Casa de Ricardo Salgado foi feita numa duna onde a construção é proibida
Conjunto edificado está a 400 metros do mar, na zona da Comporta, em local onde as novas construções são proibidas. Câmara diz que se tratou de uma “reconstrução”. O que foi feito nada tem a ver com as modestas casas supostamente reconstruídas, nem com o que consta do registo predial actualizado.
No entanto, a Câmara de Grândola diz que o licenciamento “não está ferido de qualquer ilegalidade”. Isto porque, afirma a autarquia, se tratou da “reconstrução” de duas habitações construídas nos anos 1970, antes da entrada em vigor do Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (Protali), do Plano de Ordenamento da Orla Costeira Sado-Sines (POOC) e da delimitação da Reserva Ecológica Nacional (REN), instrumentos que passaram a vedar a construção no local.
Em Maio de 2008, a empresa Herdade da Comporta SA – uma empresa do Grupo Espírito Santo (GES) detida pela Rio Forte, holding do mesmo grupo com sede no Luxemburgo e declarada falida no final do ano passado – apresentou ao município um pedido de informação prévia. Este incidia sobre a viabilidade da “reconstrução” de dois edifícios de habitação desabitados, construídos em 1978 e 1982 a 400 metros do mar, num local onde a REN, o POOC e o Protali tinham entretanto proibido novas construções.
De acordo como a autarquia, foi pedido parecer à Comissão de Coordenação Desenvolvimento Regional do Alentejo, a qual não levantou qualquer obstáculo à pretensão, uma vez que esta “não implica(va) ampliação e consequente ocupação de novas áreas de REN”. Com base neste parecer, o pedido foi aprovado, tendo a Herdade da Comporta apresentado o respectivo projecto de arquitectura e o pedido de licenciamento da “reconstrução” no final de 2008, os quais foram deferidos pela câmara no ano seguinte.
Entre as explicações dadas por escrito ao PÚBLICO pelo presidente da câmara, o comunista Figueira Mendes, para justificar o licenciamento da obra no tempo da gestão do socialista Carlos Beato (que o PÚBLICO não conseguiu contactar), avulta a tese de que o projecto previa uma “reconstrução”. Sublinhadas são também as disposições legais que permitem esse tipo de obras em edifícios que já existiam antes da entrada em vigor dos planos que agora impedem a sua construção.
A câmara argumenta também, citando pareceres dos seus serviços de 2008, que as duas casas pré-existentes “não garantiam as melhores condições de segurança, salubridade e estética adequadas à sua utilização”.
As casas não eram da família Espírito Santo
Quanto a estas habitações, verifica-se nos documentos a que o PÚBLICO teve acesso que a sua construção foi licenciada pela autarquia, uma em 1978, em nome de Ananias Francisco Pereira, e outra em 1982, em nome de António Francisco Pereira. Constata-se também que as mesmas nunca estiveram registadas em nome da Herdade da Comporta, o que não impediu que a câmara licenciasse a sua “reconstrução” conforme requerido por aquela empresa.
Em relação à primeira, Figueira Mendes garante que “não foi possível identificar qualquer pedido (para a sua construção em 1978) em nome de Ananias Francisco Pereira”.
Uma certidão emitida em 1994, pela Divisão de Habitação e Urbanismo da autarquia certifica, contudo, que “em mil novecentos e setenta e oito deu entrada um requerimento de Ananias Francisco Pereira para construção de uma habitação, cujo processo foi aprovado e licenciado em Agosto daquele ano”. Adianta ainda que a habitação “se situa na faixa litoral”, o que significa, nos termos do artigo 9.º do Decreto Regulamentar 26/93 – que aprovou o Protali –, que desde 1993 é ali “proibida a construção ou ampliação de edifícios”.
Proibição idêntica foi depois instituída pelo POOC, em 1999, o qual determina (art.º 24.º) a interdição de “obras de construção” numa faixa de 500 metros contados a partir da “linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais”.
A casa de Ananias foi assim construída em 1979, com licença camarária, num terreno que o pai arrendava desde 1947 à família Espírito Santo.
Foi posteriormente vendida por Ananias à cidadã alemã Regina Wolf, que em 1988 a vendeu aos seus compatriotas Bettina Gutsch e Klaus Peter Gutsch – como consta na caderneta predial urbana relativa a esse prédio, com a matriz cadastral 1285. Sete anos depois, em 1995, o Tribunal de Grândola condenou o casal alemão a “deixar livre de pessoas e bens a parcela de terreno” que ocupava e que era propriedade da sociedade Santa Mónica SA, detida pela família Espírito Santo e controlada a 100% pela Herdade da Comporta, SA.
A sentença reconhece que a construção da casa foi levada a cabo com o “perfeito conhecimento dos donos das terras”. Bettina Gutsch garantiu ao PÚBLICO que ficou na casa até o tribunal a tirar de lá, “com gente da câmara e da GNR da Comporta no ano 2000”.
“Tudo o que aconteceu foi muito traumático, ao sermos forçados a abandonar a casa que tinha alvará de construção e estava legalizada”, conta Bettina, que agora vive no Brasil. Klaus Gutsch, o ex-marido, reside em Colónia, na Alemanha, com os dois filhos de ambos, nascidos em Faro e no Barreiro, e lembra como se fixou na praia do Pego. “Estávamos em Portugal desde 1989. Restaurámos um antigo barco à vela que vendemos para comprar a casa, satisfazendo todos os compromissos que a lei impunha”, incluindo pagar os impostos devidos.
Quanto à segunda habitação que existia no local, junto à que foi depois comprada pela família Gutsch, o autarca de Grândola adiantou que foi identificado um processo “em nome de António Francisco Pereira, referente à reparação de uma barraca”. O licenciamento da obra foi deferido em 1982 e em 1986 foi emitido o alvará de licença para o uso habitacional. Os donos da casa, tal como a família Gutsch, viram-se também obrigados a entregá-la à sociedade Santa Mónica.
Uma reconstrução que nunca o foi
Já em 2009, a Câmara de Grândola aprovou o projecto da Herdade da Comporta destinado à “reconstrução” das duas habitações. A autarquia não explica como é que foi possível autorizar aquela empresa a “reconstruir” casas que estavam registadas em nome de outras pessoas, mas alega que essa é uma questão de direito de propriedade alheia ao município. Relativamente ao facto de o terreno pertencer a uma empresa e a licença de construção ter sido emitida em nome de outra, a câmara adianta apenas que a Herdade da Comporta SA apresentou o pedido de informação prévia (não o pedido de licenciamento) “autorizada pela proprietária do terreno, Santa Mónica – Empreendimentos e Turismo SA”.
A “reconstrução” licenciada em 2009 contemplava um conjunto de edifícios com uma área de implantação de 371 m2, enquanto, segundo o município, as duas habitações originais ocupavam 400 m2. O projecto aprovado, entendeu então a câmara, “não resulta no aumento da área de implantação existente, pelo que não agrava nem altera a capacidade de impermeabilização do solo, nem prejudica o equilíbrio ecológico do local”.
O que a câmara não diz é que os edifícios erguidos ao abrigo do “projecto de reconstrução” nada têm a ver com as modestas habitações e anexos pré-existentes.
Questionado sobre se ali foi feita uma “reconstrução” legal ou uma construção de raiz que o POOC, o ProtaliI e o regime da REN proíbem, Figueira Mendes respondeu: “De acordo com o constante no processo de obras tratou-se efectivamente da reconstrução e alterações das construções pré-existentes.”
Bettina Gutsch e muitos moradores na aldeia vizinha da Lagoa Formosa não têm dúvidas de que não foi isso que aconteceu. “Na realidade, não houve reconstrução das duas habitações, mas a demolição de ambas para surgir uma nova construção de raiz”, diz Bettina Gutsch.
Isso mesmo é demonstrado pelas fotografia do início da obra, nas quais se constata que toda a estrutura de betão do novo conjunto foi feita sobre um terreno já sem qualquer pré-existência. Elucidativa é também a comparação das fotos das antigas construções com as da actual mansão de férias do antigo dirigente do Grupo Espírito Santo.
Além disso, basta ir ao Google Earth para se perceber que a área de implantação dos edifícios actuais é muito superior – e não inferior como constava do projecto aprovado – à das construções erguida por Ananias e pelo pai. E para afastar dúvidas é a própria certidão do registo predial relativo à propriedade de Ricardo Salgado que esclarece a questão das áreas.
De acordo com esses registos oficiais, a casa “reconstruída” ocupa 472 m2 – e não os 371 que foram aprovados – e integra uma propriedade com 3,9 hectares comprada em 2013 à Santa Mónica SA. Comprador: Sociedade de Administração de Bens Pedra da Nau SA, com sede na Rua da Pedra da Nau n.º 141, em Cascais. A sede da actual proprietária está assim instalada, precisamente, na residência habitual de Ricardo Salgado.
O ex-banqueiro foi seu presidente até Maio passado, altura em que renunciou ao cargo. Os administradores actuais são a mulher e o filho.
As perguntas dirigidas pelo PÚBLICO à empresa Herdade da Comporta sobre o assunto não obtiveram resposta.
Mais de 300 rendeiros podem vir a ser expulsos das suas casas
Francisco Jonas é produtor de arroz na Herdade da Comporta desde que se lembra. A herdade, uma das maiores de Portugal, com cerca de 12 mil hectares, é contígua à casa de praia de Ricardo Salgado e é propriedade da sociedade homónima. O avô de Ananias chegou lá há mais de um século, quando o território era “terra de ninguém”, para limpar do junco e do caniço as terras cobertas de águas paradas. “Eu nasci aqui”, afirma.
Os recentes acontecimentos que levaram à derrocada do Grupo Espírito Santo lançaram o pânico nos mais de 300 rendeiros que exploram parte das terras da Comporta. Pediram empréstimos para construir as casas que habitam em parcelas que não são suas, mas onde os responsáveis da herdade – que esteve nacionalizada entre 1975 e 1990 – sempre autorizaram a construção.
Agora temem que a eventual venda da herdade agrave a situação e sejam postos na rua. “As casas são nossas, mas os terrenos são da empresa Herdade da Comporta”, conta Francisco Jonas, frisando que a única coisa que quer é continuar a produzir arroz. “Se quiserem tirar-me daqui, têm de encomendar o caixão”, avisa.
“O ambiente é de desespero”, alerta Avelino Antunes, dirigente do Sindicato dos Agricultores do Distrito de Setúbal. Em 2016 e 2018 os rendeiros vão ter de renovar os contratos de arrendamento. Se os actuais gestores da herdade, ou outros que lhes sucedam, não aceitarem a renovação, “pode surgir um problema social de consequências imprevisíveis”, vinca o sindicalista. Está em causa o modo de vida de centenas de famílias, algumas das quais ali residem há mais de um século. Com José António Cerejo