Obama e Castro reúnem as Américas 50 anos depois

Líderes comemoram o aperto de mão entre os Presidentes dos EUA e Cuba, numa cimeira histórica na Cidade do Panamá. Mas o ambiente não será de concórdia, com Nicolás Maduro a exigir uma reparação pelas sanções impostas por Washington à Venezuela.

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Os líderes americanos começaram a chegar ao Panamá na quinta-feira Reuters

O simbolismo desse momento histórico é difícil de desvalorizar: mais do que a confirmação da aproximação entre os dois inimigos que sobraram da Guerra Fria, trata-se do fim do isolamento e ostracismo do regime de Havana no palco internacional. A normalização diplomática, em passos graduais, foi anunciada pelos dois Presidentes de Cuba e dos EUA em Dezembro. O início do degelo foi marcado pelo levantamento de uma série de restrições às viagens e exportações para a ilha, e pelos contactos de alto nível para o restabelecimento do canal diplomático e a reabertura de embaixadas – as equipas deverão voltar a reunir-se à margem da cimeira.

O próximo passo, especula a imprensa norte-americana, pode acontecer já agora, no Panamá: a Administração Obama está preparada para retirar Cuba da lista oficial de Estados que patrocinam o terrorismo, que inclui também o Irão, a Síria e o Sudão. O Presidente admitiu esta quinta-feira na Jamaica que só está à espera de receber a recomendação oficial do Departamento de Estado para formalizar essa medida, e assim levantar um dos principais obstáculos ao financiamento e desenvolvimento da actividade bancária em Cuba.

O passo final será a revogação do embargo comercial a Cuba que vigora desde a década de 1960, uma derradeira medida que não depende de Obama mas antes do Congresso dos EUA. O Presidente Raúl Castro não esconde a impaciência, embora saiba que o seu país não está preparado para um fim abrupto do bloqueio. O seu Governo vem promovendo medidas de liberalização gradual de algumas actividades, mas o Estado não perdeu o controlo dos meios de produção ou de sectores fundamentais.

Castro chega à Cidade do Panamá “de cabeça erguida”, numa posição reforçada pelo reconhecimento do fracasso da política norte-americana em relação a Cuba, considera o especialista da Universidade de Harvard Jorge Domínguez, entrevistado pelo El País. Ainda assim, deverá resistir a comemorações triunfalistas: fora da delegação oficial, composta pelo Presidente e seus ministros, também viajaram para a capital panamiana dissidentes políticos, autores de blogues, empresários e outros representantes da sociedade civil cubana, que tencionam chamar a atenção para o défice democrático ou situação dos direitos humanos no programa que decorre em paralelo ao da conferência dos líderes governamentais.

“É preciso valorizar este instantâneo da nova Cuba”, escrevia a experiente analista Julia Sweig, do think-tank Council of Foreign Relations, aconselhando os mais cépticos a “resistir ao reflexo de fazer pouco caso da representação cubana” como sendo uma encenação, “de algum modo traçada e controlada” pelo regime. “Cuba está a mudar e a abrir-se ao mundo, levando em conta as suas próprias políticas e prerrogativas domésticas – como todos os outros países presentes”, comparava.

Na quinta-feira, os detractores do regime castrista que participavam num evento com o Presidente do Panamá, Juan Carlos Varela, e o antigo Presidente dos EUA, Bill Clinton, foram vaiados por apoiantes do Governo de Cuba, com gritos de “imperialistas” e “mercenários”. Alguns elementos da delegação cubana abandonaram o local, explicando que jamais aceitariam “dividir o mesmo palco com grupos pagos pelos EUA para desestabilizar o Governo de Cuba”, disse Ariana Guerra Hernandez, porta-voz de um grupo de estudantes universitários.

O incidente veio expôr a outra face ou a segunda “narrativa” que também faz parte da Cimeira das Américas: a da hostilidade, confronto e polarização, representada pela “tensão” entre a Venezuela e os EUA, acentuada depois das sanções de Washington a sete dirigentes venezuelanos em represália pela violação dos direitos humanos. Aliás, naquele protesto estiveram também presentes defensores de Nicolás Maduro, que contestavam a presença dos familiares dos adversários políticos do Presidente que estão detidos na Venezuela. “Fico indignada quando penso que a organização convidou pessoas que andaram a instigar a violência”, disse à AP Yendry Velazquez de Bracho, uma das manifestantes, referindo-se às mulheres de Leopoldo López, líder do partido de oposição Vontade Popular, e do alcaide metropolitano de Caracas, Antonio Ledezma.

Moisés Naím, um dos mais atentos observadores da política latino-americana, assinalava essa dualidade política da região, patente no evento do Panamá. Se o aguardado cumprimento entre Obama e Castro “reflecte o que deverá ser o futuro do hemisfério, a ópera-bufa que será encenada pelo Governo da Venezuela reflectirá o seu passado”, escreveu. As fotos de Maduro com os seus aliados serão a prova de como esse passado – que associou à perpetuação de líderes, cliques e partidos no poder – “ainda não foi superado”.

As últimas duas cimeiras das Américas (2009 e 2012) encerraram sem acordo, precisamente por causa do isolamento de Havana pelos EUA. Para Richard E. Feinberg, da Brookings Institution, outro think-tank, a reavaliação da política face a Cuba, bem como outras iniciativas da Administração norte-americana relativas a “matérias substantivas com interesse para o mundo latino-americano”, acabaram com o clima de "nós-contra-eles" que prevaleceu nos anteriores encontros. “Obama tem acções e políticas concretas para mostrar [aos seus parceiros] no Panamá”, observa Jorge Domínguez. Mas isso não lhe garante nada, acrescentou.

Como notava o antigo secretário norte-americano do Comércio, Carlos Gutierrez, alguns países deverão assumir a causa venezuelana em contraposição à hegemonia de Washington – até os líderes que se opõem às políticas de Maduro, como por exemplo o Presidente da Colômbia, manifestaram o seu incómodo com a imposição de sanções (que considerou “contraproducentes”). Os constrangimentos económicos poderão, contudo, refrear os ímpetos do bloco latino-americano para prolongar o braço-de-ferro com os EUA. Santiago Canton, director do programa da América Latina do Robert F. Kennedy Center for Justice and Human Rights, acredita que o encontro da Cidade do Panamá “tem potencial para ser a Cimeira das Américas mais importante de sempre”.

Com uma agenda oficial quase exclusivamente dedicada a matérias económicas, com uma tónica no crescimento das desigualdades, os 35 líderes presentes na cimeira vão discutir os últimos “retoques” de um comunicado conjunto, uma declaração final e subscrita por todos a assinalar o entendimento e compromisso dos parceiros regionais em questões que vão do aquecimento global à imigração, o combate ao crime e ao narcotráfico, as políticas de educação ou a promoção dos valores democráticos.

Uma das matérias que ajudará a promover o consenso diz respeito às negociações de paz entre o Governo da Colômbia e a guerrilha das FARC. A expectativa é que surja uma posição conjunta em apoio dos esforços em curso para fechar o processo que corre em Havana desde 2012 e pôr fim a um conflito de mais de cinco décadas, que fez 220 mil vítimas.

De resto, vários dos líderes presentes tencionavam aproveitar o pretexto e oportunidade da cimeira do Panamá para resolver algumas das suas picardias, desavenças ou outras questões pendentes em encontros bilaterais. Por exemplo, a imprensa brasileira anunciou a intenção da Presidente Dilma Rousseff de, no seu encontro com Obama, exigir mais uma vez a retirada do seu nome da lista de líderes estrangeiros vigiados pela Agência Nacional de Segurança dos EUA.

Michelle Bachelet ausente
Consciente de que a Bolívia vai tentar forçar a discussão da sua disputa territorial com o Chile, a Presidente Michelle Bachelet não viajou para o Panamá. A questão – que tem a ver com uma parcela de 120 mil quilómetros quadrados anexados pelo Chile após a Guerra do Pacífico (1879/83) – tornou-se um cavalo de batalha para o Governo de Evo Morales, e já deu origem a um processo no tribunal Internacional de Haia.

A Bolívia alega que a privatização dos portos de Arica e Antogafasta pelo Governo do Chile configura uma violação dos termos do tratado de paz assinado pelos dois países em 1904, que fixou uma indemnização à Bolívia pela perda do território, incluindo o seu único pedaço de costa, numa extensão de 400 km, e também previa um regime facilitado de acesso aos dois portos em questão. As autoridades chilenas asseguram que as cláusulas que garantem o livre acesso dos produtos bolivarianos aos portos não deixaram de ser cumpridas após a privatização.

O objectivo do Presidente bolivariano é reunir apoios regionais para a sua causa: “Como o Chile não quis negociar bilateralmente, só nos resta a alternativa de tratar o assunto num fórum internacional”, justificou o porta-voz da pretensão boliviana, o ex-Presidente Carlos Mesa. A Bolívia garante que não desistirá de recuperar o seu acesso à costa. “Só renunciamos ao nosso direito ao mar se nos matarem a todos”, dramatizou o vice-Presidente, Álvaro García Linera, na semana passada.

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