Fernando Medina: o rosto da “tranquila renovação geracional” do PS

O novo Presidente da Câmara de Lisboa, que toma posse nesta segunda-feira, nasceu na clandestinidade e entrou na política através das associações estudantis. Tem 42 anos e é economista.

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Fernando Medina Maciel de Almeida Correia acabava de nascer, no Porto, em casa dos avós paternos, porque a sua mãe, Helena Medina, entrou em trabalho de parto antes de chegar à maternidade. Se fosse uma menina, o anúncio seria em tudo igual, mudando apenas o destino da viagem: Porto-Lisboa, rezaria a nota, nesse caso.

Edgar Correia e Helena Medina, um jovem casal de funcionários do PCP, portuenses, envolveram-se bem cedo nas lutas estudantis contra a ditadura. O PCP atribuiu-lhes esta tarefa, no final de 1972, de integrar a direcção do partido numa das zonas onde a luta contra o regime era mais arriscada. Edgar partiu antes, como responsável do PCP pelo Alentejo e Algarve. A família juntou-se em Agosto de 1973, tinha Fernando cinco meses. Helena era a responsável pela “defesa da casa”, o que implicava passar, perante os olhares dos estranhos, como uma exemplar dona de casa. 

De facto, foi no Porto que Fernando viveu a sua infância e juventude, já depois do 25 de Abril, e do regresso dos seus pais à normalidade. A deles – um casal de dirigentes comunistas em plena revolução e o que se lhe seguiu. Edgar Correia, o seu pai, engenheiro de formação, só voltou ao Porto em 1975, depois de ter ajudado a implantar as bases da reforma agrária e das cooperativas de produção no Alentejo. Viria a ser afastado do PCP em 2002, altura em que era um dos mais reconhecidos dirigentes da “Renovação Comunista”, num processo que sempre contestou e considerou representar um “delito de opinião”. Morreu em 2005 afirmando-se, como sempre, comunista. 

Mas é no Porto que está a sua família. Do lado da mãe, um ramo de artistas e intelectuais; do lado do pai, uma história oposicionista que remonta aos tempos em que o seu bisavô, também Fernando, combateu no Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra e se inscreveu no Socorro Vermelho Internacional, uma organização ligada à Internacional Comunista. Mais tarde, ainda antes da Segunda Guerra, o avô Fernando afastou-se do partido engrossando as fileiras dos críticos do estalinismo, não deixando de prosseguir intensa actividade de combate ao regime e apoiando aqueles que se exilavam do país por razões políticas.

Agora é em Lisboa, como Presidente da Câmara, que Fernando Medina está. António Costa já pensava passar-lhe o testemunho quando o convidou para seu número dois na lista que ganhou as autárquicas na capital, em Outubro de 2013. “Este seria sempre, até por limitação legal, o meu ultimo mandato e por isso a lista foi elaborada para poder permitir uma tranquila transição geracional”, explica o secretário-geral do PS ao PÚBLICO. E porquê Fernando Medina, perguntamos-lhe? “O Fernando tinha a disponibilidade, a vontade, a experiência governativa, as qualidades pessoais e políticas, o apoio da maioria plural que tem governado a cidade nestes oito anos e a capacidade para a renovar, alargar e reinventar o seu próprio caminho.”

Costa recorda-se de ter conhecido o seu sucessor “há cerca de 20 anos”, quando Medina “foi assessor do primeiro-ministro António Guterres”. Mas o que o levou a São Bento foi um acontecimento anterior e que ainda hoje o diferencia dos dirigentes do PS.

Contra as propinas
Com 20 anos, e em plena crise estudantil das propinas, Fernando concorre e faz parte da lista que ganha a direcção da Associação de Estudantes da Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Nessa altura, o Porto é uma aldeia gaulesa, mas ao contrário. Enquanto as academias de Lisboa e de Coimbra se articulam, se reúnem, e organizam boa parte da contestação estudantil, a Federação Académica do Porto (FAP), que junta todas as associações de estudantes das universidades da cidade, mantém-se de fora. São os anos do “pacto com laranja”, uma série de acordos assinados entre a FAP e o Governo da altura, liderado por Cavaco Silva, que tentava sem êxito fazer cumprir as suas leis das propinas, que iniciariam o co-financiamento do ensino superior público pelos seus utilizadores (ao contrário do que se passava, e ainda se passa, nos países europeus de referência). Foi o tempo do primeiro embate político sobre a “boa despesa pública”. As obras públicas venceram, já então…

A vitória da lista de Medina em Economia haveria de mudar alguma coisa, mas já foi tarde. Em 1995, no último ano do cavaquismo, chega a Presidente da FAP. Gustavo Cardoso está a sair da associação do ISCTE, mas ainda se recorda das intervenções de Medina nos animados Encontros Nacionais de Direcções Associativas que marcaram aquele período. “Já se lhe notava uma acentuada característica de liderança”, anota o sociólogo. “Tinha um perfil pouco habitual, porque era capaz de propor, de sintetizar e não apenas de reivindicar.”

Era generoso, também. Numa ocasião, pagou do seu bolso uma viagem no tal comboio Porto-Lisboa para participar num debate da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, porque os anfitriões estavam na bancarrota.

Foi nos Estados-Gerais para uma Nova Maioria, organizados por Guterres, que Medina se aproximou do PS, mas sem se inscrever no partido. Nos anos seguintes, já depois da vitória do PS de António Guterres nas legislativas e de Jorge Sampaio nas presidenciais, Medina conclui a licenciatura e participa no Conselho Nacional de Educação. Inicia a sua vida profissional como técnico num instituto do Ministério do Trabalho. Na política entra pela parte “técnica”, a convite do então ministro Marçal Grilo. Torna-se consultor do Grupo de Trabalho do Ministério da Educação da Presidência Portuguesa da União Europeia, entre 1999 e 2000. É daí que vai, então, para assessor, primeiro, e adjunto, depois, de António Guterres, em São Bento. Primeiro com as áreas da Educação e da Ciência, depois com a Economia.

Esses foram os melhores anos: o país parecia corresponder aos desejos do mais optimista dos recém-licenciados. Saramago ganhou o Nobel. Havia pleno emprego. Eram os anos da Expo e da “estratégia de Lisboa”. Os seus pais também estão empenhados numa mudança política. Edgar Correia, na Comissão Política do PCP, e Helena Medina, que dirige o sector intelectual do partido em Lisboa, são dois dos mais destacados dirigentes da nova linha que vence o debate interno com a estratégia “Novo Impulso”, em 1998. O PS está coligado com o PCP na Câmara de Lisboa.

A Europa parecia dar passos irreversíveis. “Cresci numa época em que a Europa era vista como um grande espaço de liberdade e uma referência de desenvolvimento. Aquilo com que a minha geração e as seguintes vão ter de lidar é com o realinhamento do país face a uma realidade europeia fracturada entre os países do norte e os países do sul. Ainda não sabemos como é que é tudo isto se vai casar”, disse, recentemente, numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro no Jornal de Negócios.

Mas em 2001, a desilusão venceria. O “Novo Impulso” foi derrotado e os pais de Fernando passaram a ser dissidentes no partido em que militavam há mais de 30 anos. E o Governo que Medina assessorava, a partir de São Bento, estava por um fio.
Com a queda de Guterres, conclui o seu mestrado em Sociologia Económica com uma tese sobre «Globalização económica numa perspectiva histórica». Começa a trabalhar com Miguel Cadilhe na antiga Agência Portuguesa para o Investimento (actual AICEP). Mas a política voltará a chamá-lo.

 Geração pós-yuppie
José António Vieira da Silva, escolhido por José Sócrates para chefiar o ministério do Trabalho, em 2005, convidou-o para secretário de Estado, depois de juntos terem trabalhado no programa do PS. Por si passa uma das bandeiras do Governo, as Novas Oportunidades, um plano de formação para adultos. Medina consegue também alguns acordos históricos na Concertação Social, CGTP incluída, como o do aumento do salário mínimo e o do subsídio de desemprego. "O Fernando tem características muito especiais", adianta Vieira da Silva.

"Para além de uma grande curiosidade e da capacidade de se envolver em áreas muito diferentes, é muito persistente. Nunca desiste. Ou desiste com muita dificuldade...", sublinha o ex-ministro. Isso e ser "da geração pós-yuppie" são dois traços distintivos que Vieira da Silva aponta a Medina. Porque a sua passagem pelas associações de estudantes faz uma ponte com a geração anterior do PS - onde se encontram Ferro Rodrigues e o próprio Vieira da Silva - e marca uma diferença com a geração intermédia que não teve qualquer tipo de experiência em movimentos sociais. "Isso tem uma influência muito grande", afirma Vieira da Silva.

No Governo, Medina envolve-se - naquela que é uma das suas características mais evidentes - no debate sobre a “flexigurança”, um neologismo que vem da Dinamarca e pretende fazer a quadratura do círculo entre flexibilidade da legislação laboral e condições de emprego e formação para os trabalhadores. Medina não vê estas questões, como a maioria, pelo prisma ideológico. Tenta seguir a actualidade e procurar soluções. “É sistemático”, avalia Gustavo Cardoso. A “flexigurança” é um bom exemplo, porque nunca chegou a sair, em Portugal, do papel. E hoje, na Dinamarca, o balanço dos seu criadores não é sequer muito positivo, porque a parte “flexi” se sobrepôs politicamente ao resto.

E é nesta “eterna aprendizagem da desilusão” - uma citação que Sócrates gostava de usar para definir a política - que Medina assiste à crise de 2008, o princípio do fim do seu Governo.

Nos últimos anos, será Secretário de Estado Adjunto, da Indústria e do Desenvolvimento, com Vieira da Silva como ministro, como acontecera desde os tempos do Emprego. Acumulará com a difícil tarefa de ser porta-voz do PS.

Entre reuniões com a troika e o afastamento que se seguiu durante a liderança de António José Seguro (que não o chamou para nenhuma função de relevo no partido), a sua actividade ficou confinada ao Parlamento. Ali teve, entre outras, a missão de atacar a proposta do PCP para a renegociação unilateral da dívida portuguesa. A tarefa não era, por todas as razões, fácil. A sua primeira frase fez com que os comunistas o acusassem de se confundir com o PSD: “O caminho apresentado pelo Partido Comunista é um caminho de irresponsabilidade e de populismo, que não podemos acompanhar.”

Daí a “disponibilidade” que António Costa assegura ter visto para uma mudança. Em 2013, ser número dois de um futuro número um seria uma proposta irrecusável. Numa autarquia, a complexidade é outra. Não envolve as variáveis que Medina gosta de enumerar, num articulado discurso explicativo com que brinda qualquer tentativa de análise, por mais fútil que seja a ocasião política. Há alcatrão e lioz, graffittis e carros em segunda fila. E uma dívida para gerir, apesar de Costa garantir que deixou “a casa arrumada”.

Casado, com dois filhos, Fernando Medina tem um irmão, Edgar Medina, cineasta, que também integrou o movimento associativo estudantil. Mas a família raramente ganha à política, desde os tempos em que Fernando Medina nasceu, e o anúncio foi escrito no jornal como uma charada.

Talvez por isso, este Domingo de Páscoa não tenha sido a última festa em família, liberta de compromissos, quando Fernando Medina já não é número dois e ainda não é número um. Foi passado a escrever o discurso que irá ler às 18 horas desta segunda-feira, no Salão Nobre dos Paços do Concelho?. O seu primeiro, como Presidente da maior autarquia do país, de onde já saíram, só nos últimos 20 anos, um ministro, um Presidente da República, um primeiro-ministro e um candidato à chefia do Governo.

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