Arriscar a pintura

A primeira exposição de pintura de Jorge Queiroz em Portugal — e a primeira, também, em que notamos a vontade de tudo mudar na sua obra

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A pintura de Jorge Queiroz foge da elegância, do gosto e do consenso dos seus desenhos anteriores
O Caso

, de Jorge Queiroz, é uma exposição surpreendente. Primeiro, porque o artista nos tem habituado a uma prática artística ancorada no desenho, e aqui mostra apenas pintura. Segundo, porque esta técnica introduz uma espessura tridimensional numa obra centrada na bidimensionalidade. Pareceria que com estas duas premissas bem óbvias esgotaríamos as razões pelas quais as novas obras de Jorge Queiroz nos espantam. Nada disso.

Como é habitual em si, o artista fala pouco do seu trabalho. Menciona que esta é a terceira exposição de pintura que faz, embora as outras duas não tenham acontecido em Portugal. Refere que o desenho a certo ponto começou a “chamar” pela pintura, e que a partir daí esta se tornou a solução evidente para os problemas que se colocava. Ora o desenho, sobretudo nos últimos anos, tem sabido concentrar o interesse de um mercado seguro, ávido de elegância quando não de bom gosto. Neste registo, optar pela pintura é um risco, e mais um motivo de espanto. Sobretudo uma pintura que foge da elegância, do gosto e consenso que os desenhos demonstravam.

E contudo a linguagem própria a Jorge Queiroz mantém-se. Gestos largos, personagens, formas ambíguas sobre fundos que fugiam às normas compositivas e que, com frequência, pareciam querer extravasar os limites de cada folha de papel já existiam anteriormente, transitando agora para a pintura com as adaptações necessárias. A própria matéria parece forçar processos que caracterizam formalmente a obra deste artista, e que a potenciam agora de um modo bem diferente do que sucedia nos desenhos. Nas 18 obras distribuídas pelos dois pisos do Pavilhão Branco, encontramos a mancha informe e a geometria, o pormenor infinitamente pequeno e o muito grande, a figura cortada e a figura cheia, a horizontal, a vertical, o círculo aberto ou fechado, e sobretudo um apelo a que nos aproximemos de cada obra e a vejamos bem, porque algum detalhe que é impossível descobrir de longe se esconderá algures. Através da matéria colorida, ora espessa, ora velada, através das diferentes camadas que adivinhamos sobrepostas no suporte, cada peça convoca em primeiro lugar uma narrativa, uma estória, um segredo oculto em O Caso: o título global que o artista deu à exposição é também a expressão comum a todos os títulos dos quadros presentes que, tal como na literatura policial, implicam a existência de uma trama, de um enredo que importa descobrir. Entre O caso da figuraO caso da coragem ou O caso da anatomia do sono, Jorge Queiroz convida-nos para um trabalho de desvelamento que se processa, sobretudo, na própria pintura.

Cada obra funciona assim como uma caixa; diríamos quase como uma boneca russa, uma matrioshka que contivesse no seu interior muitas outras bonecas idênticas, apenas diferentes na escala, não fosse o que se desvela ser sempre diferente daquilo que o precede. Ou, noutro registo, uma boîte en valise duchampiana. Esta recuperação da narratividade, do contar uma história que é também a história da arte (paisagem, retrato, cena de costumes, quase todos os géneros clássicos da história da pintura são citados numa ou noutra obra), afasta definitivamente a obra de Jorge Queiroz de qualquer movimento modernista de que queiram aproximá-la. A estória é coisa de outros tempos, do classicismo, e está muito longe do impasse em que a apropriação desenfreada da arte modernista pela contemporaneidade se enreda. É nos artistas mais jovens, e sobretudo numa prática da pintura mais conotada com o Norte da Europa, que conseguimos encontrar uma família artística para o trabalho de Jorge Queiroz. Em tempos, citou o nome de Mark Manders, um notável escultor holandês que representou o seu país na Bienal de Veneza de há dois anos, e em cuja obra a figura também tem uma presença marcante. No trabalho deste último, tal como em Jorge Queiroz, pressente-se a tentativa de ultrapassar aquilo que está instituído. Para além da obra em si, é também isto que importa, acima de tudo, assinalar.

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