O ano em que os solos de bateria calaram Boyhood

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Sempre se pode dizer que Hawke foi envelhecendo em público de forma mais visível (por exemplo na trilogia do próprio Linklater: Antes do Amanhecer/Anoitecer/Meia-Noite, de 1995, 2004 e 2013, respectivamente) do que Arquette, que nos últimos anos tem (des)aparecido muito na televisão. É natural que a memória da sereia de Lost Highway, de David Lynch, seja violentamente confrontada em Boyhood, o filme perdedor neste Óscares. É verdade, o envelhecimento dela é uma das matérias que o filme usa – mas também foi ela a ter o Óscar, de actriz secundária, e não Hawke.

Uma das coisas mais bonitas é a forma como a proeza, essa coisa de um filme rodado em 12 anos, está diluída, fazendo-nos experimentar o tempo através das mudanças físicas que se instalam nos planos de forma inevitável, sem alarde mas sem negociação. A dado momento da rodagem, por exemplo, Arquette ficou grávida; o filme também é disso um documento – mas coisa privada, como um álbum que sobretudo lhes pertence, aos actores, o que é ainda mais bonito, porque nem é “informação” que o filme precise de comunicar ao espectador.

Em Arquette cumpre-se, assim, de forma eloquente mas quieta a belíssima dinâmica de desaparecimento, de rasura, do filme: aquilo que desaparece deles, actores, aquilo que desaparece do corpo deles, actores, é o que ficou no plano lá atrás.

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Uma das coisas mais bonitas é a forma como a proeza, essa coisa de um filme rodado em 12 anos, está diluída DR

E foi assim que Boyhood, o melhor dos filmes nomeados, desapareceu dos Óscares – apenas um, para Arquette, mas também é do desaparecido, apostamos, que nos iremos lembrar. Não houve hipótese para um filme que trabalha o apagamento numa edição que não resistiu ao barulho dos que publicitaram os seus virtuosismos. É um filme que se cala perante filmes que alardeiam: Birdman ou (a Inesperada Virtude da Ignorância), de Iñarritu, quatro Óscares (Filme, Realizador, Argumento Original e Fotografia), e Whiplash – Nos Limites, de Damien Chazelle, três (Actor Secundário, para J. K. Simmons, Montagem e Mistura de Som).

É o mesmo “som” nos dois filmes e não falamos apenas dos solos de bateria que em ambos parecem empurrá-los pelos olhos do espectador adentro. Um dos momentos da cerimónia desta madrugada, protagonizado por Neil Patrick Harris, o apresentador de serviço, fez essa associação, parodiando o famigerado “plano único” (a ilusão de plano único, aliás) do filme de Iñarritu: Neil percorreu os bastidores do Dolby Theater de cuecas e meias, para desaguar no solo de bateria de Miles Teller, que interpreta em Whiplash um promissor estudante de bateria às mãos de um professor perigosa e letalmente voluntarioso (J.K. Simmons).

É o mesmo “som” e isso quer dizer que é a mesma forma, nos dois filmes, de anunciar ao espectador a proeza. Whiplash é filmado como um clip publicitário – as imagens podiam servir para incentivar o consumo de bateria e baquetas –, a violência da relação sadomasoquista entre as personagens é tratada como espectáculo de exploitation. Não é muito diferente o virtuosismo de J.K. Simmons, aliás.

É legítimo passar o filme a perguntarmo-nos, perante personagens sem passado, sem futuro e sem mistério – e sem memória que as constitua –, o que é que as motiva. Porque é que aceitam estar próximas uma da outra? São idiotas? São apenas puro efeito e são usadas enquanto tal.

E é com efeito que Alejandro González Iñárritu (ainda) conseguiu enganar alguns. Passa neste filme da montagem paralela e do ponto de vista de várias câmaras, as armas nos filmes anteriores, para um fluxo contínuo alimentado a planos sequências, como se tudo não pudesse ser senão a verdade captada e nada mais do que essa verdade – o microcosmos é o do mundo de uma estrela, de Hollywood, de filmes de super-heróis (Michael Keaton), que tenta resolver as suas dúvidas existenciais, transcender-se e ganhar legitimidade, montando uma peça de Raymond Carver e actuando na Broadway.

Não é caso para dizer que Iñárritu consiga ser outro realizador, diferente do manipulador de destinos e de epifanias que costuma ser. Há ainda assim a vibração de uma dúvida a intrometer-se nos seus procedimentos habituais. Mas basta lembrarmo-nos da dor, da nevrose, da angústia, de Noite de Estreia (1977), de John Cassavetes (pode parecer esdrúxula essa lembrança, é verdade...), e compará-los com os clichés sobre o logro e a fama que são capazes de passar escondidos com o ruído dos solos de bateria, para se repor a verdade da suposta audácia do filme de Iñarritu: a haver, será puramente técnica. Um Óscar de realização é redundante perante o prémio ao director de fotografia: não estava já o assunto arrumado?

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