A busca de Chico Buarque em Berlim
Chico Buarque já era adulto quando soube, por acaso, que tinha um irmão alemão. A tentativa de o descobrir levou-o a Berlim — e inspirou o seu novo romance. Esta é a história de uma visita à sua nova família.
Além das duas, estavam à mesa o marido de Kerstin, Michael, e a mãe dela, Monika Knebel, uma senhora miudinha de 75 anos, olhos claros, cabelos bem pretos em estilo Chanel e expressão zangada. Monika fora casada durante quase uma década com Sergio Günther — a figura ausente que unia a todos naquela celebração improvável. Pai de Kerstin e avô de Josepha, Günther era o filho que o historiador Sérgio Buarque de Holanda teve em 1930 e não chegou a conhecer, o irmão alemão de Chico Buarque, cuja busca inspirou o romance lançado no fim do ano [e que sai para as livrarias portuguesas a 16 de Fevereiro, pela Companhia das Letras].
Chico chegou com uma sacola de presentes. Deu um colar para Monika e outro para Kerstin. Josepha ganhou uma pulseira. Como o colar que a sobrinha usava, todos eram peças de uma loja de joias art déco de Paris, descoberta meses antes pela namorada do compositor, a cantora Thaís Gulin. Chico ainda sacou dois pares de sapatilhas, um para a sobrinha, outro para a filha dela, também compradas na capital francesa, numa butique indicada pela atriz Silvia Buarque, sua filha mais velha. Dias mais tarde, Silvia receberia fotos das primas exibindo as sapatilhas com os pés para o alto.
Assim que nos sentamos, ele ganhou da sobrinha um pequeno pacote. Abriu e era uma estrela branca de madeira, com 24 pontas, pouco maior que uma bola de tênis, acoplada a uma lâmpada diminuta. “Parece um móbile do Calder”, comentou, fitando o objeto. “As pessoas costumam pendurar na porta de casa na época do Natal. É muito comum aqui na Alemanha”, disse Kerstin.
Virando-se para Michael, o escritor quis explicar por que ele fora excluído da troca de presentes. Contou que viera de Paris apenas com a bagagem de mão e a cachaça que havia comprado foi apreendida na hora do embarque. A polícia francesa atirou a garrafa ao lixo, quebrando-a com força — imitava o gesto enquanto contava. Fiquei com a sensação de que havia acabado de inventar a história.
Naquela noite de 6 de novembro, Kerstin comemorava seu aniversário. Dali a três dias seria o de Josepha. A mãe nasceu em 1961, ano em que o Muro de Berlim foi erguido; a filha fez dois anos exatamente na data em que ele veio abaixo. A primeira completava 53 anos, a jovem faria 27. Kerstin se recorda de que a família estava reunida na cozinha, festejando o segundo aniversário da filha, e na hora não percebeu o que ocorria: “Fui acompanhar minha prima até a porta, para me despedir, e então vimos os vizinhos se abraçando na rua, eufóricos. Achamos que tinham conseguido autorização para deixar o país. Só perto da meia-noite meu cunhado telefonou e disse: ‘Abriram as fronteiras, estão todos atravessando para o outro lado!’ Fomos para a frente da tevê e ficamos ali, de pijama, sem acreditar no que víamos.”
Todas as três gerações — avó, filha e neta — vivem, desde sempre, na parte leste da cidade. Kerstin trabalha como vendedora de uma perfumaria em um grande shopping center de Berlim. Recebe cerca de 1450 euros por mês. “Fui gerente de outra perfumaria, mas a loja fechou em 2013”, ela disse.
Ao contrário da mãe, que tem os cabelos negros, Josepha é loira. “Lembra a Scarlett Johansson, com um pouco de boa vontade”, comentou Chico comigo. No ano passado, Josepha se formou em Biologia. Seu trabalho de conclusão de curso tratava de aranhas: “Examinei o comportamento reprodutivo particular de um tipo de aranha. O macho fere a fêmea durante a copulação, comete mutilação genital para impedir que ela venha a copular com outros machos. E assim se assegura da paternidade”, ela explicou. Quando a conheci, Josepha estava à procura de emprego — “algo no ramo da zoologia ou conservação da natureza” — e não tinha renda mensal fixa: “Só um trabalhinho de bico fora da minha área.”
O jantar transcorria entre amenidades, num clima ao mesmo tempo festivo e comedido. Havia alguma cerimônia misturada a um indisfarçável encantamento por parte dos novos parentes. Entre frases em espanhol e palavras soltas em alemão, Chico conversava quase sempre em inglês, língua em que Josepha se expressa com fluência, Kerstin fala razoavelmente e Monika ignora por completo. Como que para fazer graça, e na intenção de atrair a viúva do irmão para a conversa, ele lançou na roda dois versinhos no idioma de Goethe: Zwei Apfelsinen im Haar/ Und an der Hüfte Bananen. “Conhecem isso?”, perguntou. “Sim, é sua”, adiantou-se Josepha. Imediatamente estavam todos cantarolando a melodia de A Banda.
A exemplo do que ocorreu mundo afora, a marchinha composta em 1966, quando Chico Buarque tinha 22 anos, tornou-se muito popular na Alemanha. E, como também aconteceu em várias partes, a tradução não guardava nenhuma semelhança com a letra original. Estava à toa na vida/ o meu amor me chamou havia se transformado em Duas laranjas nos cabelos/ e bananas nos quadris.
O enredo da canção, de um lirismo meio naïf, descreve a transfiguração fugaz na vida de uma cidade interiorana ao ver a banda passar, até que tudo volta ao normal (e ao tédio de sempre) depois que os músicos vão embora. Em alemão, a canção se converteu num pastiche ruim de Carmen Miranda, no qual Brasil e México são misturados, como se fossem um único país: uma tal Rosita vestia bananas nos quadris e todos iriam copiá-la, pois “à noitinha, no México, quando se vai para o Carnaval/ (porque lá tudo gira em torno do Carnaval) /todo mundo diz:/ Vá para a avenida/ porque lá Rosita dança ao som da banda”.
Chico logo tratou de esclarecer: “Essa letra não é minha! Não tenho culpa por essa história de laranja no cabelo e bananas nas ancas.” Todos riram. Ele então perguntou a Monika se Sergio Günther teria conhecido a canção. “Sim, certamente”, ela respondeu. “Então de alguma forma ele me conheceu”, disse o compositor.
A caminho do restaurante, andando na noite fria de Berlim a passos ligeiros, como costuma fazer, Chico mapeava o terreno que encontraríamos pela frente. Seu irmão havia trocado Monika por outra mulher quando Kerstin ainda não tinha dez anos. Muito ausente, não teria sido um bom pai. Para piorar, a mulher por quem Monika havia sido preterida era sua colega, trabalhava como figurinista na mesma tevê da Alemanha Oriental em que a ex atuava como sonoplasta. Seu nome, de uma sonoridade exótica e inesquecível, era Kordula — Kordula Stövesand. Em português, proparoxítono: Kórdula.
Como se não bastasse, constava que Günther tivera outro filho, fruto de uma relação extraconjugal em Halle, cidade vizinha a Berlim para a qual viajava a trabalho com frequência, ainda no período de seu primeiro casamento. O garoto se chamaria Robert, mas dele ninguém tinha notícia. Por todas essas razões, explicou Chico, Monika não tinha particular interesse em falar do ex-marido. Kordula e Robert eram assuntos obviamente vetados no jantar, por razões elementares de delicadeza. Mas ele iria insistir em saber mais coisas sobre o irmão. “O negócio é centrar fogo na Monika”, orientou, com uma empolgação juvenil.
Ein bisschen champagner?, perguntou Chico, olhando na direção de Monika, para abrir os trabalhos.
Bisschen, ela respondeu, indicando com os dedos que, sim, queria só um pouquinho. Logo adiante, antes da chegada dos pratos, uma nova pergunta:
Zigarette? Monika se levantou animada para fumar com o cunhado que jamais sonhou ter. “Vou lá fora com a Monika, vamos fumar um pouco de marijuana”, disse Chico, fazendo todos rirem mais uma vez.
Noch eine Zigarette? Quando a cena se repetiu, Monika fez questão de abrir o estojo prateado ao passar por mim: ali estavam dispostos cigarros bem fininhos. Não era marijuana.
No final, depois do champanhe, da comida e dos vinhos, Chico pediu um bolo ao garçom, para comemorar o aniversário de Kerstin. Não tinha. “Mas como?”, ele perguntou, teatralmente contrariado. Logo providenciaram um doce com uma vela em cima, e Chico puxou um Happy Birthday diante do bolinho improvisado. Quando todos terminaram de cantar, emendou, sozinho, num sonoro português: com quem será, com quem será, com quem será que a Kerstin vai casar? E, apontando na direção do marido, que passara a noite toda sem abrir a boca: é com o Michael, é com o Michael.
Era a terceira viagem de Chico Buarque a Berlim em um ano e meio. A primeira, quando ele conheceu os familiares, ocorreu em maio de 2013, assim que dois pesquisadores contratados pela Companhia das Letras para auxiliá-lo avisaram que haviam descoberto o paradeiro de seu irmão. A história, no entanto, começa antes.
Ainda em 2012, três anos depois de ter publicado Leite Derramado, Chico havia começado a escrever seu novo romance. Entre os dois, como tem feito desde que publicou Estorvo, em 1991, gravou um CD e percorreu o país em turnê. Na última temporada, a paixão por Thaís Gulin dava o tom das canções. Agora, resolvera enfrentar um tema que era tabu na família: o filho que resultou de uma aventura amorosa entre seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, e a jovem alemã Anne Ernst.
Chico não tinha conhecimento da história até seus 22 anos. Foi Manuel Bandeira, amigo de seu pai, quem lhe deu a notícia — mesmo assim, meio por acaso —, ao mencionar de passagem “aquele filho alemão do seu pai”, durante uma visita que o compositor lhe fazia junto com Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Isso ocorreu em 1967.
Desde então, e até à morte do historiador, em 1982, aos 79 anos, Chico não se lembra de ter tocado no assunto com o pai. “Quem era essa namorada do meu pai? Qual a profissão dela? O que aconteceu? Se eu tivesse peitado meu pai, talvez soubesse de tudo. Mas sabe quando...” Ele fez uma pausa e retomou: “Não tinha uma parede, mas tinha uma cortina que não ousei ultrapassar. Nem eu nem meus irmãos.”
Entre 1929 e 1930, Sérgio Buarque morou durante quase dois anos em Berlim, como correspondente de um dos jornais de Assis Chateaubriand. Embora fosse reconhecido entre os colegas pela erudição precoce, ainda não era um intelectual de fama. Raízes do Brasil é de 1936. Numa carta escrita a seu pai em dezembro de 1929 (um ano antes do nascimento do filho alemão), o jovem Sérgio conta que o salário que Chatô lhe pagava não era suficiente e, por isso, havia arrumado um segundo emprego, como colaborador de um boletim de comércio teuto-brasileiro. Dava notícia de uma gripe que o acometera, mas, apesar de todos os perrengues, dizia ter engordado: “Brevemente terei que mandar fazer um terno (a prestações — tudo se faz aqui a prestações), pois o que comprei é o único que me serve.” E concluía com palavras entusiasmadas de elogio à cidade e a seus habitantes: “Sinto-me admiravelmente bem em Berlim. [...] Os berlinenses são o povo mais amável do mundo. Não encontrei aqui nada da falada arrogância prussiana.”
Chico procurou o crítico Antonio Candido para saber se ele tinha alguma lembrança ou informação a respeito do séjour alemão de seu pai. Ouviu de Candido uma história divertida: seu amigo Sérgio havia lhe contado que um dia estava no quarto dormindo com a namorada — supostamente Anne — quando bateram à porta. Era o pai da garota. Sérgio entrou em pânico. Quando resolveu abrir, deu de cara com um sujeito segurando uma bandeja nas mãos. Trazia o café da manhã ao jovem casal. É possível, especulou Chico, que o homem fosse o dono da pensão onde Sérgio se hospedou e a namorada fosse a filha dele. “Tudo espekulationen”, brincou.
Passadas tantas décadas, a decisão de escrever sobre o irmão — concebido seis anos antes do casamento entre Sérgio Buarque e Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Hollanda — se dava, afinal, menos porque ele tivesse algo a revelar sobre essa criatura distante de destino incerto, mas quase o contrário: nada sabia a seu respeito.
O livro que se desenhava em 2012 era menos sobre o irmão alemão e muito mais sobre a busca interminável desse fantasma de irmão. Inseparável dela, “a impossível demanda pela atenção e reconhecimento do pai, cujo segredo o narrador quer penetrar, como se ao tematizar o assunto fosse encontrar, finalmente, a chave de acesso para um possível tête-à-tête, ‘olhos nos olhos’, com seu modelo impossível”, conforme escreveu o crítico José Miguel Wisnik em sua coluna no jornal O Globo.
Chico já ia pelo quarto capítulo (o livro tem 17) quando soube de uns documentos que tinham sido encontrados no apartamento onde sua mãe havia morado por muitos anos. Maria Amélia morreu em 2010, com 100 anos, e o imóvel passou para Sérgio Buarque de Hollanda Filho, o Sergito, o segundo dos sete filhos do casal. Ao retirar os móveis, ele abriu uma gaveta do criado-mudo que estava no antigo quarto da mãe e se deparou com uma correspondência entre o pai e autoridades do governo alemão. Entregou-as a Chico, que imediatamente providenciou uma tradução.
“Quando comecei a escrever o livro, meu pai, quer dizer, o pai do narrador, se chamava Jorge. Até tentei outro nome, mas não dava certo, tinha que ser Sérgio”, contou Chico. “Ao receber os documentos, vi que os alemães ali chamavam papai de Sérgio de Hollander. Foi o nome que usei.” O pai do narrador de O Irmão Alemão é o alter ego de Sérgio Buarque — uma figura erudita e distante que passa os dias na biblioteca de casa, rodeado de livros. Já a mãe do narrador se parece bem menos com Maria Amélia. A mãe de Chico era herdeira de uma família tradicional com inserção na política mineira. A mãe de Ciccio — este é o apelido do narrador, Francisco — é uma típica napolitana.
“Não me ocorreria escrever esse livro com minha mãe viva. Minha mãe, aliás, tem pouco a ver com a mãe do livro. O que tem de semelhante é que ela realmente era fascinada pelo meu pai. Ajudava, fazia tudo. Papai não dirigia e ela foi dirigindo um Fusquinha até o Paraguai para ele fuçar os arquivos da Guerra do Paraguai. Ela tinha profundo respeito pelo trabalho dele. Mas não era uma escrava, como a mãe do livro. Ela não desgostaria de ser italiana, como Assunta, a mãe que aparece no romance. Mas tem coisas ali...” Ele respirou mais fundo antes de retomar: “Minha mãe era uma leitora muito atenta, muito arguta. E ela lia meus livros. Esse livro eu não teria coragem de mostrar, teria que esconder dela. Claro, fiquei mais à vontade para escrever depois que ela morreu”, disse, abrindo um discreto sorriso.
Após um instante de silêncio, puxou novamente o fio da memória: “Meu pai morreu e ela ficou viva por mais quase trinta anos. Eu tive mil conversas com ela. E ela falava, sobretudo no fim da vida vieram muitas lembranças remotas, que me ajudaram muito a escrever o Leite Derramado. Tem muito da família dela. Ela leu, gostou muito, mas ficou um pouquinho incomodada”, falou, sorrindo de novo, para então arrematar: “A história do meu pai com essa namorada não fazia parte dessas lembranças. Ela não gostava dessa história. Não gostava mesmo. Eu poderia ter abordado: ‘Mamãe, o que você sabe da Anne?’ Nunca perguntei.”
A primeira das cartas encontradas na gaveta de Maria Amélia foi escrita em francês. Data de 31 de agosto de 1932 e se dirige à Secretaria da Infância e da Juventude de Berlim. Nela, Sérgio Buarque diz:
Senhores, tomei conhecimento de sua carta de 27.5.1932, por intermédio da Legação da Alemanha no Rio, pela qual sou informado que meu filho, Sergio, filho de Anne Ernst, nascido em Berlim em 21 de dezembro de 1930, é mantido às expensas do Estado.Para resolver essa situação, que só posso lamentar e para a qual gostaria de encontrar uma solução compatível com minhas condições econômicas, permito-me apresentar-lhes, com o consentimento da Legação, duas propostas concernentes ao futuro do meu filho.A primeira dessas propostas — a preferível a meu ver — seria fazer vir a criança ao Rio, onde ela moraria com minha família. No caso em que essa proposta seja aceita pela senhora Ernst, os custos correrão evidentemente por minha conta.
No caso em que a mesma proposta seja inaceitável e que a criança deva permanecer na Alemanha, enviarei a contribuição mensal de 150 mil réis, a única que me seria possível enviar no momento.
Na esperança de que os senhores considerem minhas propostas com benevolência, subscrevo, muito respeitosamente.
Chico Buarque tem quase certeza de que essa carta foi escrita por Manuel Bandeira. “Sou capaz de jurar. Papai não tinha esse francês fluente, correto.” As demais foram escritas em alemão.
No dia 3 de abril de 1933, o diretor do departamento consular da Alemanha no Rio de Janeiro atesta num documento ter recebido 150 mil réis de Sérgio Buarque. Em 1934, a carta da Secretaria da Infância e da Juventude de Berlim que chega ao historiador tem um tom pouco amigável:
Prezado Senhor de Hollander!Já anos atrás tentei entrar em contato com o senhor por intermédio da Legação da Alemanha no Rio de Janeiro, a fim de obter do senhor pensão alimentícia para meu pupilo Sergio Ernst, do qual o senhor é pai natural. Infelizmente, minha tentativa resultou vã. Se hoje, portanto, torno a contatá-lo, eu o faço na suposição de que é também seu desejo que a criança gerada pelo senhor tenha um lar bom e duradouro e uma educação correta.Há um bom tempo, Sergio Ernst encontra-se sob os cuidados do casal Günther, no 50, Greifswalder Strasse 212/13 pátio 2. O casal se afeiçoou ao menino e pensa em adotá-lo. O contrato de adoção foi firmado, a guarda foi autorizada judicialmente e o documento se encontra no momento no Tribunal Regional de Berlim, para concessão de dispensa de idade mínima de 50 anos e para legitimação.
A corte de legitimação solicita agora a comprovação da origem ariana. Esta pode ser demonstrada pelo lado materno. Mas o menino precisa ter ascendência ariana também por parte do pai. Tenho, assim, de pedir ao senhor que me envie sua certidão de nascimento, as de seus pais e as de seus avós maternos e paternos. Dessas certidões deve ser possível depreender a religião de seus antepassados.
Acreditando que, no interesse do menino, o senhor não há de se recusar a atender minha solicitação, espero ter notícias suas e aguardo a chegada das certidões.
Com o cumprimento alemão,
Heil Hitler!
Além da solicitação, sinistra, chamavam a atenção os pontos de exclamação no começo e no final da carta, depois de Hollander (um sobrenome tipicamente judeu) e de Hitler. Seguiram-se a essa pelo menos mais duas cartas de cada lado: o regime nazista exigindo de Sérgio Buarque, de forma pouco amistosa, atestado de sua ascendência ariana, e o historiador tentando explicar que, apesar de seus esforços, lhe era impossível conseguir tais documentos no Brasil.
A última correspondência de que se tem registro foi escrita à mão por Sérgio Buarque. A data no cabeçalho — novembro de 1937 — está riscada; acima dela aparece, em vermelho, abril 1939, contrastando com a tinta preta do que vem abaixo. É uma carta truncada, que muito provavelmente o historiador jamais chegou a enviar. Nela se lê o seguinte:
Esforcei-me bastante para conseguir todas as certidões necessárias, minhas e de meus antepassados. [...] Infelizmente, as condições aqui no Brasil não facilitam essas investigações. Até 1889, não existiam sequer certidões de nascimento, porque o catolicismo era, até então, nossa religião estatal. [...] Até o momento tenho minha certidão de batismo, a certidão de batismo de minha mãe e a certidão de casamento de meus pais. Nem mesmo a certidão de batismo de meu pai consegui obter. Escrevi sem sucesso para Pernambuco — o estado de nascimento de meu pai, bem distante do Rio. Não souberam me dizer nem mesmo a igreja onde meu pai, já falecido, foi batizado. Assim, devo desistir de ulteriores investigações sobre meus antepassados.As cartas impactaram Chico Buarque. Havia um intervalo de quase sete anos entre a primeira e a última, o desfecho era inconclusivo, pairava uma nuvem sobre que fim levara seu irmão alemão. “Num determinado momento, pensei: ‘Caramba, meu irmão foi vítima do Holocausto.’ Até conhecer as cartas, essa hipótese não tinha me passado pela cabeça. Meu pai deve ter convivido com essa sombra o tempo inteiro”, comentou.
Sérgio Buarque deixou Berlim quando o filho já estava perto de nascer. “Meu pai soube do nascimento a bordo do navio que o trouxe de volta”, falou Chico. Os efeitos da crise de 1929 teriam levado Chateaubriand a encerrar ou não renovar o contrato, precipitando o retorno do correspondente ao Brasil.
Ele esteve em Berlim pelo menos uma vez depois que o filho nasceu. “Meu pai disse a alguém ter procurado na lista telefônica por Sergio Ernst. Mas não quis ir fundo nisso. E eu entendo. O que é que vai falar? Vai encontrar o filho e agora? Por que não ficou para ver o filho nascer? Tinha uma série de constrangimentos. Ele procurava sem querer encontrar”, disse o escritor.
O mistério se desfez poucas semanas depois da descoberta das cartas. Por indicação do historiador Sidney Chalhoub, da Universidade Estadual de Campinas, a Companhia das Letras contratou seu colega João Klug, pesquisador da imigração alemã para o Brasil, que passava uma temporada em Berlim. Ele, por sua vez, acionou o museólogo alemão Dieter Lange, a quem conhecia desde 2003. Juntos, os dois começaram a trabalhar.
Professor do departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, Klug tem 59 anos e uma trajetória curiosa. Exerceu durante 12 anos a profissão de veterinário, antes de se tornar historiador. Foi por um bom tempo um pesquisador diletante enquanto cuidava de vacas e cavalos. Até hoje mantém os pés no mundo rural. Quando o entrevistei, por telefone, a conversa foi atravessada por um inusitado muuuuuuuu. Ele interrompeu sua fala e comentou: “Não sei se você ouviu esse mugido. Moro numa chácara. Tenho gado em casa.”
Lange também é um homem do interior. Nasceu no estado da Turíngia, bem no centro da Alemanha, em Böhlen, um pequeno povoado com menos de mil habitantes. Em meados do século XIX, dezenas de famílias deixaram a aldeia para trabalhar nas fazendas de café no Vale do Paraíba. Migrariam depois para o sul do Brasil, onde se estabeleceram perto de Florianópolis. Há pouco mais de dez anos, Lange esteve em Santa Catarina para rastrear, a trabalho, os descendentes de algumas dessas famílias que cruzaram o Atlântico e ainda preservam os costumes turíngios.
Chico e sua filha Silvia só se referiam a Klug e Lange como “os detetives”. E o quebra-cabeça que a dupla montou acabou se revelando menos difícil do que todos imaginavam. Primeiro, confirmaram que o casal interessado na adoção do garoto — nascido Sergio Ernst — havia de fato morado no endereço estampado na correspondência entre Sérgio Buarque e o regime nazista. Arthur Willy Günther e sua mulher, Pauline Anna Günther, viveram na Greifswalder Strasse pelo menos até 1943.
O pai alemão era uma espécie de gerente, ou zelador, da fábrica de cigarros que funcionava no local. Cigarros Problem. “Essa era a premonitória marca dos cigarros produzidos por um judeu neste edifício em estilo art déco dos anos 20, projeto do também judeu Ernst Ludwig Freud, pai do pintor e filho do dr. Sigmund”, conforme diz o narrador de O Irmão Alemão, já perto do final. Com a chegada da guerra, em 1939, o prédio foi adaptado para produzir uniformes destinados ao Exército alemão.
Klug e Lange então passaram a pesquisar se haveria algum Sergio de sobrenome Günther mais ou menos daquela idade — se vivo, ele teria 84 anos. “Zêrguio”, como se pronuncia, não era um nome muito comum no país. Encontraram na internet menções a um apresentador de televisão da Deutsche Demokratische Republik, a DDR, antiga Alemanha Oriental. Era um tipo popular entre os anos 60 e 70, mas que eles, até então, desconheciam.
A confirmação de que esse Sergio era a mesma criança supostamente adotada pelo casal Günther da fábrica de cigarros ocorreu da forma mais improvável.
Tanto João Klug como Dieter Lange frequentavam havia anos uma taberna na parte leste de Berlim, a Vineria Carvalho. O museólogo a definiu como “um ponto de encontro da velha guarda da DDR”, onde se reuniam intelectuais, boêmios, jornalistas. Em algum dia entre o final de abril e o início de maio de 2013, Lange foi à taberna e lá encontrou outro freguês assíduo. Era Werner Reinhardt, um veterano jornalista, que se recordou do encontro assim:
“Como quase sempre fazia depois do trabalho, estava sentado na Vineria Carvalho, bebendo um vino tinto espanhol com meu amigo Manfred Schmitz. O Dieter também era freguês do lugar. Naquele dia, ele se sentou à nossa mesa e contou uma história fascinante sobre alguém que, vindo do Brasil, procurava seu irmão alemão, nascido décadas atrás. E ele, Dieter, estava encarregado da pesquisa. Muito de passagem, perguntou se o nome Sergio Günther nos dizia alguma coisa.” Aqui o jornalista fez uma pausa: “Naturalmente, não tinha como adivinhar que entrava em cena o grande acaso. Eu conhecia o Sergio muito bem, havia morado com ele nos anos 70, num edifício na então praça Lênin, no 1. Fomos amigos até sua morte.”
Sergio Günther morreu em setembro de 1981, aos 50 anos, de um câncer no pulmão que o consumiu em seis meses — a mesma doença que mataria seu pai, Sérgio Buarque, no ano seguinte. Reinhardt é 12 anos mais moço que o antigo amigo. Nasceu em 1942 e estudou jornalismo em Leipzig, onde conheceu Manfred Schmitz, até hoje seu inseparável companheiro de mesa na Vineria Carvalho.
Schmitz dedicou sua carreira a Cuba, para onde viajou mais de 40 vezes, e fala bem o espanhol. Reinhardt trabalhou durante anos na União Soviética e estava na Tchecoslováquia em 1968. Fala fluentemente russo e tcheco e ficou fascinado com a Primavera de Praga. Não podia dizê-lo em público porque a Alemanha Oriental cerrava fileiras com a repressão dos tanques soviéticos. Mais tarde, trabalhou no escritório de Berlim da Novosti, a agência de notícias soviética. Nesse período, que representou o auge de sua carreira em termos financeiros, ganhava 2 mil marcos orientais (algo como 2700 euros). Hoje, recebe mil euros mensais como aposentado, e paga 500 euros de aluguel para morar no setor oriental da cidade. “Mal dá para sobreviver, preciso sempre fazer algum dinheirinho extra”, ele me disse.
Dias depois do encontro casual que desvendou a identidade do irmão alemão de Chico Buarque, Dieter Lange voltou à Vineria Carvalho, dessa vez acompanhado de João Klug. Ouviram mais histórias de Werner Reinhardt: “Pude contar a eles um bocado de coisas e fiz também alguns contatos com a família.”
“Descobri meu irmão.” Silvia Buarque estava no Festival de Cinema do Recife quando o pai ligou. Ele acabara de receber as notícias dos “detetives”, estava eufórico. Embarcaram alguns dias depois para Berlim. Era 20 de maio de 2013. Ficaram uma semana no mesmo Hotel Adlon em que Sérgio Buarque havia entrevistado Thomas Mann (então recém-agraciado com o prêmio Nobel) em 1929, e ao qual Chico Buarque retornaria mais duas vezes — em outubro de 2013, com a namorada Thaís, quando procurou algumas locações para as cenas finais do romance; e em novembro de 2014, com o livro já terminado, quando piauí o acompanhou.
“Nunca vou me esquecer do nosso primeiro encontro com Kerstin e Josepha, os olhos arregalados do meu pai”, contou-me Silvia, ela própria com os olhos radiantes, durante um almoço num restaurante do Jardim Botânico, no Rio, no final de novembro.
Chico havia recordado a mesma cena semanas antes: “Quando a Kerstin apontou aqui no saguão do hotel, ainda de longe fez um gesto, passando a mão pelo rosto para mostrar que tinha a cara comprida, que é a cara da família do meu pai. A Mangokopf.” Ela então foi em direção ao tio e o abraçou: “A vida inteira eu sonhei saber a história dele, não tinha ideia de onde era a família do meu pai.”
Sua mãe, Monika, no entanto, não queria de jeito nenhum conhecer o irmão brasileiro de Sergio Günther. “Eu dizia para o Dieter ‘Fala que sou boa pessoa’, mas a Monika não cedia”, lembrou Chico. Kerstin e Josepha acabaram por convencê-la após o encontro no Adlon. Dias depois, as três estavam no hotel. Silvia lembra que o pai estava sem jeito e Monika não parecia interessada em ajudar — consultava o relógio, olhava ao redor, dava sinais de desconforto e impaciência. A conversa não fluía. A filha aproveitou uma ida do pai ao banheiro e perguntou a ela: “Quer fumar?” Era a senha que faltava. Dirigiram-se à área reservada do hotel e lá tudo se transformou. “Ela adorou. Topou beber, se soltou. Eu a salvei pelas drogas”, brincou Silvia. Entendi naquele momento o comportamento de Chico em relação a Monika no jantar de aniversário de Kerstin: Ein bisschen champagner? Zigarette?
O encontro durou três horas. Chico subiu ao quarto do hotel para pegar seu Charm. A advertência do Ministério da Saúde estampada no maço era aquela em que o sujeito dá uma brochada: “Fumar pode causar impotência sexual.” Monika achou graça. “Podiam acrescentar que causa impotência depois dos 70 anos”, brincou. “Depois dos 80”, Chico emendou, rindo.
O nome de Sergio Ernst foi alterado para Horst Günther pelos pais adotivos (“Horst é muito germânico, tem uma carga muito forte, Sergio era um nome exótico, que chamava atenção, embora não fosse judeu”, disse Chico). O casal teve mais uma filha, Ingeborg, registrada em 1936, cinco ou seis anos mais nova que o irmão. O escritor acredita que seja “aquela história clássica do casal que não consegue ter filhos, adota uma criança e depois disso a mulher engravida”.
Aos 22 anos, Horst decidiu mudar seu prenome, retomando o Sergio de origem. O mais provável é que tenha feito isso depois da morte do pai adotivo, quando veio a tomar conhecimento de seus pais biológicos.
Sabe-se muito pouco a respeito do casal Günther, mas o escritor presume que tivessem vínculos com o nazismo: havia uma exigência por parte do governo alemão de comprovação do sangue ariano para a adoção, e essa exigência não foi atendida. “Meu irmão de alguma forma seduziu os pais adotivos — eles pegaram afeição, porque era um garoto problemático para ser adotado. Foi na base do jeitinho, alguma facilidade houve”, ele disse. “Esses pais salvaram a vida dele. Se não tivesse sido adotado, a gente não sabe, podia ter virado sabão.”
Quando a guerra terminou, Horst Günther tinha entre 14 e 15 anos. “Meu irmão foi criado sob o nazismo. É possível que tenha sido da juventude hitlerista. Um menino nessa idade vai na onda da turma, isso era incentivado nas escolas”, Chico seguiu especulando. Uma coisa é certa: “Ele não conheceu a democracia, não sabia o que era isso, nunca soube. Passou do regime nazista para o regime comunista sem intervalo.”
Na Alemanha comunista, Sergio Günther foi muitas coisas ao mesmo tempo. Ainda na década de 40, ingressou no Exército, mas não consta que tenha exercido atividades militares. Integrava o coro — uma instituição famosa de propaganda do regime. Viajou para a China e vários países da Cortina de Ferro levando a mensagem vermelha. Na década seguinte, ingressou na tevê estatal. Foi repórter, redator, locutor, produtor, apresentador de programas de variedades, ator — um pouco de tudo. Tamanha polivalência faz até lembrar o homem emancipado descrito por Karl Marx em A Ideologia Alemã — aquele que “tem a possibilidade de hoje fazer uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições, a seu bel-prazer, sem nunca se tornar caçador, pescador ou crítico”.
Sergio Günther também cantava. “Muito bom cantor, bem melhor do que eu”, nas palavras de seu irmão. Apesar do vozeirão, e de ter gravado alguns discos, ele era mais conhecido como homem de tevê. Participou em 1965 de uma revista musical televisiva chamada Berlin bleibt Berlin– “Berlim será sempre Berlim”, mesmo nome de um documentário de 1935, feito sob o nazismo, para ser apresentado na Olimpíada de 1936. No programa de Günther também havia o propósito edificante de cantar a cidade e suas belezas através dos tempos. Mas o registro era lúdico, e tinha um insuspeito ar de família com a malandragem brasileira: o quadro de que ele participa envolve sugestivamente uma canção chamada Encostadinho à Parede, sobre a vida de um sujeito que passa as noites nos bailes e cafés e volta para casa se esgueirando porque tem medo de ser flagrado pela mulher.
Em 1972, Günther passou a apresentar o dominical Berlin Original, programa de variedades com entrevistas, quadros musicais, shows, reportagens. “Acho que ele era uma espécie de Faustão da Alemanha Oriental”, divertiu-se Chico.
Além de ser uma figura de proa na televisão do Estado, Günther era um defensor aparentemente convicto do regime. Werner Reinhardt contou que os dois evitavam conversar sobre a Primavera de Praga: “Sabíamos que ia sair faísca.” Chico, ao mesmo tempo, acredita que o irmão “devia achar graça na própria ortodoxia”. Ele e Stálin faziam aniversário em datas próximas. Nessa época do ano, Günther costumava retirar do armário o retrato que tinha do ditador e exibi-lo pela casa. “O próprio Werner me falou que era uma gozação. É claro que isso era uma brincadeira”, disse o escritor.
Sentado no restaurante do Adlon, Chico explicava que a história real do irmão não alterou muito seu livro. “Não vou dizer que prejudicou, mas ajudar não ajudou. Continua a ser um livro sobre a busca impossível do meu irmão.” Falava diante da câmera, para a assistente do diretor Miguel Faria Jr., Diana Vasconcellos, e seu marido, o cinegrafista Caique Martins Ferreira, que o acompanharam durante alguns dias em Berlim. O documentário deve ser lançado este ano.
Chico já gravara uma entrevista para o próprio Faria Jr. meses antes, enquanto escrevia O Irmão Alemão: “O Miguel me perguntou se eu tinha vivido algum fracasso. Eu não disse a ele na ocasião, mas poderia ter dito: ‘Posso estar vivendo neste momento o maior fracasso da minha vida.’ É duro você perder dois anos de vida a essa altura. Se os primeiros leitores tivessem dito ‘melhor não publicar’, eu não publicaria. Com o O.K., você vai para a chuva, vai se molhar, e para de se preocupar. Já estou me soltando bastante do livro. Agora, tem essa história paralela, e dessa não vou me soltar tão cedo.”
Diante do extraordinário da descoberta do irmão, com seus acasos e coincidências felizes, o editor Luiz Schwarcz insistiu que o escritor incorporasse mais a história verdadeira à trama. Chico não cedeu. É categórico a esse respeito: “Só sei fazer ficção.” A identidade do irmão aparece apenas no capítulo final do romance. “Mesmo assim, essa história está no plano da fantasia”, ressalvou. Uma de suas preocupações em Berlim era explicar a todos os envolvidos — pesquisadores, familiares, amigos — que escrevera um livro de ficção, não uma reportagem.
A viagem que acompanhei de 3 a 9 de novembro parecia ter duas motivações fundamentais: a confraternização do escritor com as pessoas que havia conhecido e o ajudaram; a busca por mais informações a respeito daquele outro irmão. “Essa não era uma história que eu perseguisse tanto. Mas virou, ficou sendo. Fiquei muito próximo da minha família alemã. A Kerstin e a Josepha foram inclusive ao Rio. Elas enlouqueceram lá”, ele disse. As duas passaram dez dias na cidade logo depois da Copa do Mundo, a convite dele. Foram recepcionadas com um vatapá na casa de Chico, que reuniu seus seis irmãos (os tios que Kerstin desconhecia), além de sobrinhos e netos. “Era uma família brasileira, elas se sentiram acolhidas”, disse.
Agora, em seu tour afetivo-investigativo por Berlim, ele voltou ao endereço onde funcionava a fábrica de cigarros Problem, passou novamente pela Vineria Carvalho, foi até o prédio onde Sergio era vizinho de Werner Reinhardt, visitou o complexo cinematográfico de Babelsberg. É lá, ao lado do estúdio onde foi filmado O Anjo Azul, que estão guardados os arquivos com a memória da passagem do irmão pela tevê estatal.
Conheci o museólogo Dieter Lange e os jornalistas Werner Reinhardt e Manfred Schmitz logo na primeira noite em que Chico chegou a Berlim. Os três estavam juntos quando adentraram o salão do Adlon, acenando de longe. Os cumprimentos foram efusivos — abraços apertados no lugar de um simples aperto de mãos. “Como está, compañero?”, Reinhardt perguntou a Chico. Tive ali uma percepção que só se reforçaria ao longo do jantar e nos dias seguintes: eram todos extremamente amáveis, estavam sempre à disposição, querendo agradar, e pareciam melancólicos, sobretudo os dois jornalistas, nostálgicos de algo que não era exatamente o regime em que viviam antes de o Muro ruir.
Schmitz tinha a fala mansa e um olhar um pouco aquoso, que brilhava. Deve ter sido um homem bonito na juventude. Calvo, sua fisionomia forte remetia à figura de Pablo Picasso quando velho. Reinhardt não cansava de fazer piadas a respeito dos estragos provocados pelo amigo nos corações de las chicas da ilha de Fidel Castro.
Eram os traços de Reinhardt, no entanto, que chamavam a atenção de Chico. “Repara como ele parece o Sergio Bardotti”, ele me disse. Bardotti, um conhecido compositor italiano, era o criador de Os Saltimbancos, o musical infantil que Chico adaptou na década de 70. Eu havia estado com ele em Roma, na companhia do próprio Chico, nove anos antes. O comentário nada tinha de óbvio, talvez por isso fosse tão certeiro. A barba branca e rala, os lábios finos, quase sempre sorrindo, mas um sorriso discreto, a doçura do olhar, certa inocência — tudo fazia Chico ver o amigo, que morreu em 2007, na pessoa de Werner Reinhardt.
Lange era, dos três, o mais expansivo. Alto e esguio, com os cabelos raspados dos lados, um topetinho espetado e o nariz afilado apontado para baixo, ele mais parecia uma espiga de milho. Trazia a alma aldeã estampada nos gestos. Chegou ao hotel carregando um objeto retangular embrulhado num papel pardo para dar de presente a Chico. Era uma placa de rua de Böhlen, seu vilarejo, já meio enferrujada. No último dia da viagem, ao se despedir de Chico, Manfred Schmitz também o presentearia com uma caixinha de música, dessas que tocam conforme se gira a manivela. A canção era As Time Goes By, o clássico de Casablanca, o que o compositor só iria descobrir semanas depois, já de volta ao Brasil.
Foi no próprio saguão do hotel que Chico mencionou pela primeira vez a versão alemã de A Banda. Havia pesquisado dias antes, no Google, por curiosidade, para ter assunto na viagem. Reinhardt e Schmitz não apenas a conheciam, como começaram a cantar outra letra — uma segunda versão alemã que parodiava a história das laranjas e bananas para zombar do regime comunista:
Zwei Apfelsinen im Jahr und zum Parteitag Bananen/ das ganze Volk schreit Hurra – der Kommunismus ist da! Ou seja: “Duas laranjas por ano e bananas para (comemorar) o congresso do partido/ O povo todo grita Viva! — o comunismo chegou!”
A sátira circulou na Alemanha Oriental no começo dos anos 70, quando a canção fazia sucesso na parte Ocidental. Era uma crítica à escassez de frutas — de bananas, especificamente —, suprida apenas quando a direção do Partido Socialista Unificado da Alemanha realizava seu congresso para eleger o Comitê Central, o que ocorria a cada quatro anos. A banana acabou se tornando um símbolo do desabastecimento e um sonho de consumo na Alemanha Oriental. Criou-se um número extraordinário de piadas em torno da fruta cobiçada. Uma delas:
“Dá para usar uma banana como bússola?”
“Dá, sim. Põe uma à noitinha em cima do Muro. O lado que amanhecer mordido é o Leste.”
Mais até do que bananas como sinônimo de luxo e privilégio, era irônico que justamente A Banda tivesse se tornado uma canção de protesto na Alemanha comunista.
Quando chegamos à entrada do restaurante, Schmitz deu passagem para que Chico fosse na frente: “Você é el jefe.” Ele respondeu que estava ali apenas como assistente do jornalista, nada mais.
Foram consumidas três garrafas de Pinot Noir e algumas doses de grapa para arrematar. Na volta, caminhamos por várias quadras até o hotel. Fazia frio, mas não um frio paralisante. Eu vestia apenas um suéter fininho, e Reinhardt tirou seu casaco, insistindo uma, duas, três vezes até que eu o aceitasse. Vinha pontuando o percurso com suas memórias: “Aqui foi meu primeiro emprego em Berlim”, “Aqui funcionava a agência de notícias soviética”, “Aqui era a Embaixada da União Soviética”, “Aqui havia um busto de Lênin.”
Perguntei-lhe depois, por e-mail, se ele ainda tinha afinidade com o comunismo. “Comunismo nunca houve”, respondeu. “O que existia era algo que naquela época se entendia por socialismo. Infelizmente, perverteram uma ideia boa e nobre, transformaram-na numa ideologia dogmática, semelhante a uma religião. Com isso é difícil simpatizar”, escreveu. “Não sinto saudade da época anterior à Queda do Muro, o que não significa que tenha me transformado num adepto entusiasmado da ganância e do egoísmo”, completou.
E o que o atrai na situação de hoje? “Acima de tudo, a liberdade de poder viajar. Eu vivia numa situação paradoxal: os 12 mil quilômetros até à ilha Sacalina, no Extremo Oriente russo, para onde fui na última reportagem que fiz à época da DDR, eram, para mim, mais próximos que os 200 metros que me separavam de Berlim Ocidental. Agora, posso viajar para onde quiser. Quer dizer, se tiver dinheiro.”
Naquela noite, Reinhardt havia dito uma frase que me marcara: “Para vocês não há diferença entre um berlinense oriental e um ocidental. Mas para nós há. É algo psicológico.” Fiquei com ela na memória, mas na hora não perguntei “Como assim?”, nem pedi que ele explicasse melhor, talvez por medo de que ao trocá-la em miúdos ele pudesse estragar a força — do claro enigma — que continha.
Para além da sensação psicológica, as diferenças entre as duas antigas metades partidas são visíveis. Literalmente. No início de 2013, o astronauta canadense Chris Hadfield tirou uma foto de Berlim, do espaço, da Estação Espacial Internacional. Descobriu que as luzes da cidade eram diferentes. No Leste, predominava a cor amarelada das lâmpadas mais antigas; no Oeste, um brilho maior, mais claro e branco, de lâmpadas fluorescentes. O conjunto formava uma espécie de teia de aranha, uma única teia com duas cores: o lado Leste, mais escurecido e embaçado; o lado Oeste, mais brilhante, nítido e bem definido.
Não há muitos dados estatísticos sobre as desigualdades entre os dois setores de Berlim. Os números se referem, quase sempre, às duas Alemanhas. Passados 25 anos da queda do Muro, o desemprego é de mais de 9% no Leste e de menos de 6% no Oeste. O Produto Interno Bruto per capita, na antiga Alemanha Oriental, equivale a 67% do total produzido por pessoa no Oeste; a renda per capita no Leste é cerca de 80% da renda per capita no Oeste; 50% dos alemães que moram no Oeste têm casa própria, enquanto no Leste apenas um terço deles é proprietário do imóvel onde mora.
Quase todas as marcas de luxo se concentram na avenida Kurfürstendamm, a Champs-Elysées de Berlim, na parte ocidental. Desde a reunificação, foram abertas no Leste algumas lojas de grife, mas acabaram fechando as portas por falta de clientes.
Kordula. A última viúva de Sergio Günther se tornara uma obsessão para Chico Buarque desde a primeira noite em Berlim. Era a única pessoa, entre as que havia tentado contatar, que se recusara a falar com ele enquanto escrevia o romance. Günther passou os últimos 12 anos de sua vida ao lado de Kordula Stövesand, era muito provável que tivesse contado a ela detalhes de sua infância. “No fim da vida, quando sabem que vão morrer, as pessoas costumam falar”, comentou Chico. Reinhardt, que a conhecia, embora não a visse fazia anos, foi incumbido de furar o bloqueio. “Diz a ela que, se não quiser me ver, que aceite conversar ao menos com um jornalista brasileiro”, orientou o compositor, com um sorrisinho de lado.
Na terça-feira, dia 4, nos encontramos com Reinhardt e Lange no início da tarde, na Alexanderplatz, a famosa praça no Centro de Berlim. “Olá, compañero”, repetiu o jornalista, abraçando Chico. Entramos então em seu carro, rumo à Praça das Nações Unidas, nome atual da antiga praça Lênin, onde ele e Günther moraram.
Sentado ao lado do motorista dentro da BMW velhusca e meio avariada, Chico disse a Reinhardt que não o imaginava com um carrão daquele, mas com um Trabant, o popular carrinho que a Alemanha Oriental produziu entre 1957 e 1991. O jornalista nesse momento já iniciava uma conversão totalmente proibida, atravessando o canteiro central de uma avenida. Havia, no entanto, um carro estacionado que o impedia de enxergar a pista do outro lado. Ao notar a dificuldade, Chico abriu a porta e caminhou alguns passos, até que tivesse visão: “Pode vir, pode vir!”, gritava, fazendo gestos largos, como um flanelinha. A manobra foi um sucesso, mas por pouco a porta que Chico havia deixado aberta não o pegou em cheio. Depois ele me diria: “O Werner não fez cerimônia naquela manobra, reparou?”
Em pé diante do edifício, Chico e Reinhardt apontavam para cima, procurando localizar onde morara Sergio Günther. Era um prédio imenso, com três blocos paralelos altos e de arquitetura austera, sem varandas, dando a impressão de que ali viviam sem nenhum luxo muitas famílias. “Fazíamos festas na cobertura”, falou o jornalista. “Churrascos na laje”, brincou o brasileiro, tentando explicar a ele e a Dieter Lange o que a expressão significava no Brasil. Não deu muito certo.
Meio por acaso, Reinhardt comentou que ainda devia morar no prédio o oncologista que cuidou de Günther. Chamava-se Hans Jürgen Gütz. Chico ficou surpreso. “Será que ainda vive aí? Vamos tocar lá.” Não havia porteiro, a entrada estava desimpedida, foi fácil achar o nome do oncologista na lista de moradores. Reinhardt interfonou, o médico ouviu a história e pediu que o esperassem em baixo.
Dez minutos depois surgiu um senhor atarracado, manquitolando, com uma deficiência acentuada numa das pernas. Tinha os cabelos entre brancos e amarelados, vestia calça jeans, camisa laranja e colete marrom. Suas bochechas, muito rosadas, faziam dele quase um personagem de desenho animado. Ouviu novamente a história, contada agora por Chico, ali mesmo, na calçada, e nos convidou a acompanhá-lo até o bar ao lado, no térreo do próprio edifício.
Chamava-se Sofia Bar — Bulgarisches Restaurant, um lugar com toalhas quadriculadas, comida típica e jeito de antigamente. O doutor Gütz pediu uma caneca de cerveja, das grandes. Chico quis apenas água e comeu uma maçã, que apanhou de uma cesta sobre o balcão. O médico falava com entusiasmo, entre talagadas, misturando inglês e alemão. Confirmou que Sergio havia morrido de câncer no pulmão — “cigarro”. “Igual a meu pai”, comentou Chico. Também tinha lembranças de uma figura bem-humorada e irreverente. Haviam saído para beber pela vizinhança algumas vezes. “De pantufas mesmo”, contou.
Certa vez, o dr. Gütz retornou de uma viagem ao México, onde participara de um congresso, e Günther o chamou para um quadro do Berlin Original. Combinaram previamente as perguntas, mas o apresentador mudou tudo na hora, obrigando o convidado a improvisar ao vivo. Quando saímos, Chico comentou: “Não havia muita gente importante para entrevistar na Alemanha Oriental, bastava o sujeito voltar de viagem e logo virava personagem.”
A disponibilidade do médico, seu jeito afável, o inusitado de alguém que aceita descer no meio da tarde de seu apartamento para falar com um desconhecido sobre uma pessoa que estava morta havia mais de 30 anos — tudo soava simpático e ao mesmo tempo irreal. Era como se o dr. Gütz estivesse ali, a postos em seu colete marrom, esperando o momento em que alguém — qualquer pessoa — fosse lhe interfonar para contar uma história — qualquer uma — e ele pudesse então descer para aplacar sua solidão, distraindo-se por meia hora diante de uma caneca de cerveja no Sofia Bar. Poderia ser uma passagem de O Irmão Alemão.
A conversa de pouco servira para iluminar o que Chico, mais de uma vez, chamou de “buracos nessa história”, sobretudo a respeito da infância de Sergio Günther. Da Praça Lênin fomos a mais um bar, La Tienda del Toro, sempre do lado oriental da cidade. Lá Manfred Schmitz se incorporaria ao grupo. Por alguma razão que Chico não ousou perguntar, os dois jornalistas alemães haviam brigado com o dono da Vineria Carvalho. “Deve ter sido algo sério, eles não querem falar”, comentou, dando risada. No dia seguinte ele passaria pela Vineria, sem a dupla.
La Tienda del Toro é uma taberna acolhedora: apenas duas mesas de madeira diante de uma vitrine com frios, queijos, alcaparras, tortas, e uma parede lateral cheia de vinhos. Assim que nos instalamos, Reinhardt não se conteve: “Este aqui é Chico Buarque, um importante cantor brasileiro”, falou para o dono da tasca, um uruguaio com barba e rabo de cavalo, em pé ao nosso lado para tirar os pedidos. “Ah, Tchico”, desdenhou o proprietário, como quem dissesse: “Muito prazer, Angela Merkel.” Virou as costas e voltou para trás do balcão. “Acho que ele não acreditou”, comentei. “Melhor assim”, disse Chico.
Em princípio, o escritor avisou que não beberia, havia exagerado na véspera. Acabou cedendo aos apelos da mesa para que entrasse no brinde.
Passada meia hora ou mais, Chico tirou o celular do bolso, desdobrou um papelzinho e anunciou em voz alta: “Vou ligar para Kordula.” Teclou o número. Enquanto aguardava com o aparelho no ouvido, começou a cantarolar Ângela, de Tom Jobim. Mas a musa que surgiu em sua boca não era Ângela, e sim a viúva do irmão alemão: “Kordula/ por que tão triste assim, agora?/ E tudo quanto existe, chora...”
Assim que atenderam, ele passou correndo o aparelho para Reinhardt, sem falar nada. Era o marido de Kordula. Ouviu que o irmão brasileiro de Sergio Günther estava escrevendo um livro, gostaria de falar com ela. A figurinista estava viajando. Retornaria a Berlim no dia seguinte — o recado será dado, disse o marido.
A essa altura, o dono da Tienda havia, afinal, se dado conta de que aquele era mesmo Chico Buarque. Aproximou-se sem jeito, pediu desculpas, falou sobre a importância do compositor em sua juventude, no Uruguai — tudo isso olhando para baixo, sem conseguir encarar o ídolo. Chico tampouco estava à vontade.
Como em outras ocasiões semelhantes, tive a impressão de que ele fica aliviado quando o fã lhe pede logo uma foto. É só sorrir e pronto. Isso o incomoda menos do que ter de ouvir elogios (quase sempre ligados às canções da época da ditadura ou a sua capacidade de dar voz à alma feminina) ou, ainda pior, ser incitado a se pronunciar sobre a situação política do Brasil. O uruguaio da Tienda também pediu uma foto, mas queria a imagem do compositor ao lado de sua mulher, uma espanhola de Valência, simpática e despachada. Depois dos cliques, ela virou-se para mim: “Chico Buarque é tudo para ele. Eu sou mais desligada. Só conheço Caetano Veloso e alguns outros.”
A sexta-feira do dia 7 amanheceu ensolarada em Berlim. Não que Chico acordasse cedo. “I’m a pm man”, ele dizia, sempre que alguém cogitava uma atividade matinal. Por volta do meio-dia uma van estacionou em frente ao hotel para pegá-lo. Quem havia providenciado o veículo era o dono da Vineria Carvalho, Aurelio, com quem os jornalistas alemães estavam brigados. A motorista era sua namorada, Ana. O prestativo casal vinha reforçar a sensação de que tudo, ou quase tudo nessa história, aconteceu na base do improviso e da camaradagem, num esquema que subvertia a divisão burguesa do trabalho e desafiava a ideia corrente de serviços profissionais.
O destino da viagem seria o complexo cinematográfico de Babelsberg, na cidade de Potsdam, a 40 minutos de Berlim. Lá estão os estúdios da UFA, onde foram realizadas algumas obras-primas do cinema alemão durante a República de Weimar. Sérgio Buarque frequentou o lugar em 1930. Foi responsável pelas legendas em português de O Anjo Azul, filme que projetou Marlene Dietrich no papel de uma dançarina de cabaré que seduz e arruína a vida de um sisudo professor. O jovem intelectual brasileiro havia arrumado mais esse bico para sobreviver.
No romance de Chico, o professor Hollander, pai do narrador, conhece sua namorada, Anne, nos estúdios de O Anjo Azul. Isso foi inventado, mas o pai de Chico cantava a música do filme em casa. “Era uma música tão bonita. Ele bebia um pouquinho e cantava”, contou o filho, cantarolando. “Daí fui ver quem era o autor da música. Quem era? O sujeito se chamava Friedrich Hollaender!”
Sérgio Buarque também contava que tinha visto Marlene Dietrich pelos corredores da UFA. Costumava se empolgar e ia aumentando a história. “Ele dizia que haviam se encontrado diversas vezes. Mamãe corrigia: ‘Sérgio, para com isso, você viu ela de longe, uma vez só.’” A mania do Sérgio Buarque de inflar os enredos é algo que visivelmente fascina o filho escritor.
Babelsberg (justamente com esse nome, Montanha de Babel) era, na cabeça de Chico Buarque, o local de um encontro imaginário entre o pai e o irmão alemão. Sergio Günther havia trabalhado nos estúdios de tevê, vizinhos aos de cinema. E muito do que fez está guardado nos arquivos da UFA. O museólogo Dieter Lange tinha reservado um horário e uma sala para que Chico pudesse ver algumas gravações do irmão.
No trajeto, ele recebeu uma ligação por Skype de Luiz Schwarcz. O livro tinha acabado de ficar pronto, o editor queria mostrá-lo. Trocaram algumas palavras, Chico pediu para ver a reprodução das imagens e cartas, gostou do resultado. “Para a minha família o livro está indo hoje?”, perguntou. “No máximo até segunda, porque hoje precisamos mandar para os jornais”, respondeu Schwarcz. Ao desligar, Chico fez uma brincadeira sobre o tratamento que o livro receberia da Folha: “Já sei qual será a chamada: ‘Irmão de Chico era cantor e comunista.’”
Ana, a motorista da van, estava meio perdida, indecisa sobre qual caminho seguir, quando Chico anunciou: “Estamos na rua Hannah Arendt. Eu sou o verdadeiro GPS.” Além de uma blague, era mais uma coincidência. Ele estava lendo naqueles dias Homens em Tempos Sombrios, reunião de ensaios e perfis escritos pela filósofa alemã sobre personagens importantes da cultura do século XX cuja vida ou obra haviam sido marcadas pela experiência do totalitarismo.
Ganhou o livro em seu aniversário de 70 anos, em junho, da filha caçula, Luisa, professora de filosofia antiga na PUC do Rio. Deixou o volume hibernando enquanto terminava de escrever o romance. Decidiu levá-lo na viagem e havia se entusiasmado com o texto sobre Walter Benjamin.
Hannah Arendt fala da má sorte como elemento predominante na vida do filósofo. Em 1940, quando fugia do nazismo, ao se ver encurralado na fronteira da França com a Espanha, Benjamin ingeriu uma dose letal de morfina. No dia seguinte a fronteira foi aberta, e as demais pessoas que estavam ali conseguiram se salvar. O suicídio, naquelas circunstâncias, era uma espécie de confirmação da história vista como sucessão de catástrofes, como ele havia retratado em sua obra.
A certa altura, Arendt se detém na obsessão de Benjamin pela figura do Corcundinha, famoso personagem de contos de fadas que o acompanhou da infância até a morte. O Corcundinha é uma versão alemã do Saci. Vive de pregar peças e fazer com que as coisas deem errado: é por causa dele que a comida queima na panela, o copo se quebra no chão, os objetos se perdem pela casa, a criança tropeça e cai. Sempre que um dos incontáveis pequenos desastres da infância ocorria, a mãe de Benjamin costumava dizer: “O sr. Desajeitado mandou lembranças.” Era outra maneira de nomear o Corcundinha.
Chico Buarque via o sr. Desajeitado por toda parte em Berlim. Lembrou-se dele quando Werner Reinhardt comentou, na primeira noite da viagem, que Sergio não sabia dirigir. Havia lembrado novamente no jantar com a família, quando a mãe de Kerstin, Monika, mencionou a incapacidade do marido de trocar uma lâmpada ou pregar um quadro na parede. Eram exemplos da mesma inaptidão para a vida prática do pai, Sérgio Buarque. Mas todas as tentativas de Chico de colocar o sr. Desajeitado na roda das conversas foram frustradas. Ninguém — nem os amigos nem a família — entendia as conexões que ele fazia entre Sergio Günther e Walter Benjamin.
Ocomplexo cinematográfico de Babelsberg parecia um campus universitário num dia sem aula – ninguém nas ruas, um silêncio difuso entre os prédios e a sensação de haver dentro deles mais espaço do que gente trabalhando. Chico chegou à sala de exibição dos arquivos, onde algumas fitas cassete o aguardavam numa bandeja de plástico.
Não foi fácil encontrar Sergio Günther. Havia em cada uma das fitas vários programas e um mar de imagens. As cenas em branco e preto se sucediam, tive a sensação de que Cid Moreira iria emergir a qualquer instante – ou, então, que todos aqueles personagens e seu blablablá incompreensível fossem apenas versões disfarçadas de Cid Moreira. Depois de 20 minutos ou mais de buscas frustradas, Chico desanimou: “Nada funciona na Alemanha”, disse, rindo. E mencionou mais uma vez: culpa do Corcundinha.
Sergio Günther finalmente surgiu na tela, rodeado de crianças, coordenando uma espécie de entrevista coletiva com os representantes do futuro alemão. “O que você vai ser quando crescer?”, “Qual é seu sonho?” – as perguntas giravam em torno disso. Chico fez duas ou três observações e rapidamente se desinteressou.
Dias antes, ele havia discorrido sobre as semelhanças entre os Sérgios. Falou da posição do antebraço – “assim, dobrado nas costas” –, idêntica no pai e no filho. E ressaltou o “sorriso igualzinho” dos dois: “Meu irmão apresentando um programa e o pessoal aplaudindo, aquele aplauso de claque, meio falso, e aquele sorriso meio falso também. Eu me lembro do meu pai fazer exatamente isso em situações sociais, é um meio sorriso muito parecido.” Havia, ainda, “a coisa do cigarro”. “Ele também fumava cigarro forte, de fumo preto, como meu pai. Quando ficou difícil encontrar cigarros sem filtro, Sergio tirava o filtro, igualzinho a meu pai. Ele tem muita coisa do meu pai. Inclusive o lado musical.”
Havia, claro, uma curiosidade genuína em ver o irmão diante da tevê. Mas Chico tinha desde 2013 um CD com uma seleção de imagens de Sergio Günther. A ida aos arquivos de Babelsberg, acompanhada pela equipe de filmagem de Miguel Faria Jr., encerrava também algo teatral. Chico parecia ter consciência de que ele também era um personagem em ação nos domínios da UFA.
No caminho de volta, o compositor tornou a se ocupar de Kordula, que havia ignorado seu telefonema. “I’m furious with Kordula”, dizia, dentro da van, olhando para trás, na direção de Dieter Lange. Anunciou que iria escrever um novo livro: Against Kordula. Repetiu o nome em alemão e português — Gegen Kordula, Contra Kordula — e comentou: “Vai ser um best-seller na Alemanha.” Telefonou para a filha Silvia e contou rapidamente como havia sido a visita a Babelsberg, para então retomar o destampatório contra a viúva inacessível: “Vou montar minhas peças em Berlim e boicotar Kordula. Vamos convidar outra pessoa para fazer os figurinos.”
O Adlon estava repleto no sábado à noite. Era véspera da comemoração dos 25 anos da Queda do Muro e os festejos iriam se concentrar em frente ao Portão de Brandemburgo, a poucos metros de onde estávamos. O andar térreo do hotel havia sido parcialmente interditado para uma recepção que tinha Mikhail Gorbachev como grande estrela. Ao deixar seu quarto, Chico Buarque precisou dar uma volta até conseguir chegar ao hall de entrada. Do outro lado da porta de vidro giratória havia uma multidão de repórteres e cinegrafistas. O artista passou por eles como se fosse invisível. Era uma cena: Chico Buarque completamente ignorado pelos jornalistas.
Ele havia marcado um jantar de despedida no restaurante italiano Al Contadino Sotte Le Stelle. Da família alemã, apenas a filha de Sergio Günther, Kerstin, compareceu, acompanhada do marido. Josepha fora comemorar seu aniversário com amigos, Monika preferiu ficar em casa. A sobrinha de Chico estreava o colar que havia ganhado de presente dois dias antes. Também era a primeira vez que ela se reunia com o jornalista Werner Reinhardt, amigo do pai. O escritor sentou entre os dois.
Assim que chegou, Reinhardt disse a Chico que tinha algo a lhe dizer. Havia um sinal de apreensão não muito convincente em seu rosto. Tinha falado com Kordula. Ele mesmo telefonara para romper o silêncio intransponível. Contou o que ouvira da viúva: Sergio não lhe trazia boas recordações, muito pelo contrário. Falar dele não lhe fazia bem. Quando ele morreu, Kordula descobriu que o marido era um mentiroso. Deparou-se com cartas e fotos que a magoaram. “Muchas chicas”, resumiu Reinhardt, com uma expressão de lamento e cumplicidade, um leve sorriso a lhe escapar do canto da boca.
Chico deu uma risada, mas ao mesmo tempo se conteve porque o assunto não era socializável com o resto da mesa. Além da presença de Kerstin, o museólogo Dieter Lange estava acompanhado da namorada, que fazia seu début diante do artista brasileiro.
A conversa deu várias voltas, todos beberam — primeiro champanhe, depois vinho tinto, grapa no final.
“Se você escrever sobre Kordula, estará escrevendo sobre a mulher”, falou a certa altura Reinhardt, dirigindo-se a Chico. “É mais fácil fazer música sobre a mulher do que escrever a respeito da mulher. Você canta, e ela ouve”, respondeu o compositor.
“Quantas canções você já fez?”, ele perguntou.
“Demasiadas”, disse o artista.
“Mais de 300?”, insistiu o alemão, que parecia ter pesquisado.
“Sim, mais. Fiz demasiadas canções, não precisava ter feito tantas.”
“E livros, quantos?”
“Cinco. É o suficiente.” Falou balançando a cabeça, como quem pesa o que diz. Não havia computado os livros anteriores a Estorvo (quatro peças teatrais e a novela Fazenda Modelo).
Até o fim do jantar, Reinhardt ainda revelaria detalhes das farras que havia feito ao lado de Sergio Günther. “In grapa veritas est”, anunciou Chico, dando a conversa por encerrada quando as revelações atingiram o clímax.
Já era começo da madrugada do dia 9 quando deixamos o restaurante. Fazia frio. No caminho de volta, Chico tirou o celular do bolso e ligou para a filha — os “detetives”, afinal, eram eles. “Silvinha, Kordula foi uma vítima. Seu tio era um mulherengo, quando morreu...”, disse o pai. A filha desandou a falar do outro lado, atropelando-o. Chico insistiu: “Não, não, nós precisamos reabilitar Kordula. Quando seu tio morreu, ela descobriu que ele tinha várias mulheres, vidas paralelas.” Conversaram. Ela ficou um pouco decepcionada. Sabendo que eu acompanhava seu pai, perguntou se isso entraria na piauí. “Qual o problema?”, perguntou Chico. Depois de desligar, virou-se para mim: “A essa altura do campeonato” — parecia se referir à época histórica, mas poderia estar falando de si mesmo, do fim da viagem ou talvez de tudo ao mesmo tempo — “a essa altura, não vejo nenhum problema em revelar que Sergio era um mulherengo. Se tivesse descoberto que foi da Stasi, que tomou parte na repressão política, aí sim seria uma mácula, uma coisa chata de digerir.” Estávamos chegando ao Adlon, o portão de Brandemburgo estava iluminado. Poucas pessoas perambulavam pela praça que no dia seguinte seria ocupada por uma multidão. A cidade estava em festa. E havia em Berlim um brasileiro feliz.
ExclusivoPÚBLICO/
piauíA tradução e a revisão dos termos em alemão foram feitas por Sergio Tellaroli