Dentro de uma fábrica de exames chinesa
Todos os anos 9 milhões de jovens chineses passam pelo tormento do gaokao. O exame nacional para admissão na universidade é a maior dor de cabeça para alunos, pais e professores. É, também, a única oportunidade para estes jovens escaparem a um futuro de trabalho no campo ou na fábrica.
A rua principal de Maotanchang, uma pequena cidade remota no rendilhado montanhoso da província de Anhui, na China oriental, está quase deserta. Um homem dormita sentado no seu riquexó e duas idosas encaminham-se com a sua enxada para os campos de arroz nos arredores da cidade. Eram 11h44 de uma manhã de domingo na Primavera passada e as lojas com comida, chá e livros estavam fechadas. Nem a árvore sagrada da cidade atraía suplicantes: debaixo dos seus frondosos ramos, apenas um pacotinho de incenso ardia num monte de cinza.
Um minuto mais tarde, às 11h45 precisamente, toda esta tranquilidade foi estilhaçada. Milhares de adolescentes romperam pelo portão da frente da escola secundária de Maotanchang. Muitos deles vestiam casacos corta-vento parecidos, pretos e brancos, com o slogan escrito em inglês: “Eu acredito, eu consigo”. Era hora de almoço numa das mais reservadas escolas chinesas de estudo intensivo — uma fábrica de memorização onde 20 mil estudantes, o quádruplo da população oficial da cidade, estudam noite e dia para o exame nacional de admissão à universidade, conhecido como “gaokao”. Este dificílimo exame, que acontece anualmente em Junho e se estende por dois ou três dias (dependendo da província), é a prova seminal para a entrada nas universidades chinesas. Para os estudantes de Maotanchang, na sua maioria originários de zonas rurais, é a oportunidade para terem uma vida para além do trabalho nos campos ou nas fábricas, de garantirem um futuro às suas famílias à custa do seu trabalho árduo e notas elevadas.
Yang Wei, filho de um produtor de pêssegos, está no último ano do secundário e é quem me guia pela multidão. Calça uns ténis-bota e passou os últimos três anos, fins-de-semana incluídos, a entrar às 6h20 na primeira aula e a regressar a casa pelas 22h50. Só nos encontramos a esta hora, depois de já ter feito mais um teste nesta manhã de domingo, porque era o seu único tempo livre em toda a semana — as únicas três horas livres de que dispõe. Agora que faltam apenas 69 dias para o gaokao — a data aparece em todos os calendários espalhados pela cidade —, Yang está prestes a entrar numa recta final frenética. “Se juntássemos todo o papel que gastei com todos os testes que tive de fazer nestes últimos três anos, dava para embrulhar o mundo”, diz com um sorriso amargo.
Yang e eu comunicámo-nos ao longo de semanas através das redes sociais. Com os seus 18 anos, parecia até um pouco excitado por ser o anfitrião de um americano expatriado. E, contudo, uma crise estava prestes a rebentar. Apesar de todos os testes, as notas de Yang entraram em derrapagem e isso ensombrou o almoço que tivemos com a sua família no quarto que ele e a mãe ocupam, muito perto da árvore sagrada. A nós juntou-se o pai de Yang, de visita naquela tarde de domingo, e Cao Yingsheng, o seu melhor amigo e conterrâneo, também ele colega de estudo em Maotanchang — todos apinhados num espaço que pouco mais leva do que um beliche, uma secretária e uma panela de pressão para cozer o arroz. A renda do quarto é alta, rivalizando mesmo com os preços praticados na Baixa de Pequim, mais um dos sacrifícios que os pais de Yang têm de fazer para ajudar o seu único filho e também único membro desta família a conseguir chegar à universidade.
Lin Jiamin, a mãe de Yang, abandonou o seu emprego numa fábrica de vestuário para o ajudar neste último ano de estudo. Também a mãe de Cao veio viver com o filho. “É muita pressão”, diz Cao, cuja família pagou dois mil dólares por semestre, mais do que a de Yang porque Cao tinha notas baixas quando chegou ao secundário. “A minha mãe passa a vida a lembrar-me de como tenho de estudar mesmo a sério, porque para pagar as propinas o meu pai tem de estar a trabalhar na construção, longe de casa.” Durante um minuto o silêncio caiu sobre o quarto. Também eles sabem que esse será o destino destes rapazes se falharem no gaokao. “Dagong”, diz Yang. “Trabalho manual.” Ele e Cao teriam de se juntar ao exército de 260 milhões de chineses trabalhadores migrantes.
Yang estava desejoso de mostrar como era um bom anfitrião. Mas, enquanto a sua mãe nos voltava a servir de asas de frango e tofu com sésamo, as suas pálpebras iam fechando. A mãe de Yang queria que ele fosse estudar logo a seguir ao almoço, mas o pai intercedeu: “O cérebro também precisa de descanso”, disse. E, quase sem emitir palavra, Yang subiu para o beliche e adormeceu profundamente ainda de ténis calçados.
Não há nada mais esgotante para as famílias chinesas do que o espectro do gaokao. O exame — há duas versões, uma para Humanística e outra para Ciências — é a encarnação moderna do keju imperialista, entendido como o primeiro modelo standardizado de exame do mundo. Por mais de 1300 anos e já no século XX foi o keju que conduziu os jovens chineses a um diploma académico e a ingressarem nos serviços públicos. Hoje, mais de nove milhões de estudantes fazem anualmente o seu gaokao (menos, cerca de 3,5 milhões, fazem outro tipo de exames, o SAT e o ACT). Mas a pressão sobre os estudantes chineses para começarem a memorizar e a regurgitar informação começa muito antes, logo na primária. Até no jardim infantil bilingue e liberal onde os meus filhos andaram em Pequim, os pais empurravam os filhos de cinco anos para a aprendizagem das tabuadas de multiplicar e para o domínio perfeito da sintaxe chinesa e inglesa, prevenindo assim que, chegados à primária, não ficassem atrás dos demais. “Para ser mesmo honesta, a corrida ao gaokao começa logo à nascença”, disse-me uma mãe chinesa minha amiga.
A passadeira rolante que são estes testes na China tem produzido, juntamente com elevados níveis de literacia e sob controlo governamental, alguns dos mais assustadoramente competentes examinandos do mundo. Os estudantes secundários de Xangai têm dominado os últimos dois ciclos do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes [Pisa, na sigla em inglês, avaliação dos alunos da OCDE], o que já foi interpretado por fontes norte-americanas como um “momento Sputnik” da superioridade chinesa. Contudo, apesar de os profissionais americanos de Educação procurarem a todo o custo descortinar os segredos por detrás da mestria do estudo na China, é no próprio país que o gaokao está sob fogo, visto como um anacronismo, que sufoca a criatividade e coloca demasiada pressão sobre os ombros dos jovens. À medida que se aproxima o gaokao, a taxa de suicídios entre os adolescentes tende a aumentar. Há dois anos, um estudante divulgou online uma fotografia chocante: estudantes debruçados sobre livros numa sala de aula numa escola secundária pública, todos ligados a catéteres de alimentação intravenosa para se aguentarem durante o estudo.
Pequim está agora a forçar a introdução de reformas para redução da carga de estudo, algo que poderia vir a permitir tanto a valorização dos currículos para além das notas finais de cada um, como as próprias universidades passarem a considerar outros factores que não somente os resultados do gaokao. Mas estes esforços têm encontrado resistência, sinal de uma burocracia enraizada mas também do receio dos próprios pais de que se for aliviada a pressão sobre os filhos estudantes isso possa comprometer os seus resultados escolares e o seu futuro. “A China foi apanhada no dilema do prisioneiro: ninguém quer dar parte de fraco porque o gaokao ainda é o único caminho que leva ao paraíso”, diz Yong Zhao, professor de Ciências da Educação na Universidade do Oregon e autor do livro Who’s Afraid of the Big Bad Dragon?
Em todas as áreas urbanas chinesas têm proliferado este tipo de escolas de preparação intensiva para os exames. Mas Maotanchang permanece um mundo à parte, uma cidade que vive à custa da sua única indústria, a produção de máquinas de exame, com o mesmo empenho cego com que outras produzem decorações natalícias ou meias. A abundância de estudantes universitários pode ter corrompido o valor de se ter uma licenciatura, sobretudo quando olhamos para os números do desemprego ou do subemprego, em ascensão junto dos recém-licenciados. E muitas famílias ricas chinesas nem entram nesta contabilidade porque podem ter os filhos a estudar em escolas internacionais privadas ou no estrangeiro. Mas para os menos abastados, como Yang, a incerteza da economia apenas veio intensificar a competição do gaokao: poucos pontos podem determinar se uma licenciatura vale tudo — ou nada.
“A competição está agora ainda mais feroz”, diz Jiang Xueqin, vice-director da Tsinghua University High School. “E os estudantes de origem rural são quem fica para trás.”
Isolada nas montanhas de Anhui, a duas horas da cidade mais próxima, a escola de Maotanchang dirige-se sobretudo a estes estudantes vindos dos campos. E orgulha-se de ter banido as distracções da vida moderna: o uso de telemóveis e de computadores está proibido; e nos dormitórios, onde não cabem nem metade dos alunos que os ocupam, não há tomadas de electricidade. Também o amor está banido. Na cidade, onde também ficam os estudantes que vivem com as mães em exíguos quartos, as autoridades mandaram fechar todos os locais de entretenimento. Esta é bem capaz de ser a única cidade em toda a China que não tem um cibercafé, um salão com mesas de bilhar ou máquinas de jogo. “Não há mais nada para fazer além de estudar”, diz Yang.
Mas não é só por aquilo que a cidade (não) oferece que se consegue instilar disciplina em miúdos como Yang, um adolescente adorável vindo de Yuejin e a quem o pai se refere como “o miúdo mais traquina da aldeia”. Todo o corpo docente masculino de Maotanchang distribuiu lições de vida, reprimendas e, frequentemente, até castigos, com um espírito de rigor militarista: os seus postos de trabalho e os bónus no ordenado dependem directamente dos elevados resultados conseguidos pelos seus alunos. Guardas patrulham os 6600 metros quadrados do campus em carrinhos de golfe e em motos, e câmaras de vigilância captam os movimentos dos alunos dentro das salas de aula, nos dormitórios e até nas ruas desta pequena cidade. Mas viver neste “circuito fechado”, como lhe chama Li Zhenhua, um professor assistente, dá resultados. Em 1998, apenas 98 dos alunos de Maotanchang tiveram a nota mínima exigida no gaokao para acesso ao ensino universitário. Quinze anos depois, 9312 estudantes passaram e a escola pretendia chegar aos 10 mil em 2014. Yang e Cao esperavam estar entre estes.
“Agora não o podemos perturbar”, murmura Yang Qi, o pai de Yang, mal ele adormece no beliche. Põe os óculos de sol à aviador e a mulher, que tem um vestido cor de laranja e sapatos de salto alto forrados a lantejoulas, procura o seu guarda-sol azul para me levarem a passear pelos jardins da escola. No campus de Maotanchang só são permitidas visitas nestas três horas das tardes de domingo. São horas que os pais de Yang aproveitam para consultar as tabelas com notas espalhadas pela escola e verificam as listas de alunos à procura dos resultados dos últimos testes do filho. No início do ano lectivo, este era até um ritual gratificante porque as notas de Yang se aproximavam do que é exigido para entrar numa das 120 principais universidades da China. Mas agora parece duvidoso que ele consiga sequer entrar numa das de segunda linha. “Nem precisamos de ver”, diz Yang Qi. “Só queremos que o nosso filho se esforce e estude porque tanto a mãe dele como eu nunca tivemos a oportunidade de chegar tão longe [na escolaridade].”
Apesar de alguns sinais de pânico, os pais de Yang queriam mostrar-me as razões do sucesso da escola, como se as suas próprias expectativas de mobilidade social dependessem disso. A escola de Maotanchang começou de forma humilde em 1939, como um oásis que acolhia os estudantes que procuravam escapar à invasão japonesa de Hefei, a capital da província de Anhui. Estabeleceu-se definitivamente como escola depois da revolução comunista de 1949. Mas meio século depois, enquanto a economia do litoral chinês floresceu, Maotanchang transformou-se num velho navio cujo casco foi sendo escavado por comunidades de trabalhadores rurais migrantes e soterrada em dívidas. A sua ressurreição deve-se à decisão da China, em 1999, de “dar o seu salto em frente” como tantas vezes é referida a aposta na educação superior. O número de universidades chinesas triplicou e a população estudantil passou para 31 milhões — maior do que em qualquer outro país do mundo (os Estados Unidos têm 21 milhões). E cada um destes alunos tem primeiro de passar pelo seu gaokao.
Como o ancestral exame imperial, o gaokao pretendia introduzir a meritocracia num sistema que de outra forma seria sobretudo elitista, garantindo um rumo e a possibilidade de ascensão social a quem tem menos recursos. (Os alunos que conseguissem os melhores resultados no keju, depois de dias trancados numa cela sem janelas, tinham a honra de entrar na Cidade Proibida de Pequim pelo portão médio do Imperador.) Mas os estudantes de zonas rurais continuam em clara desvantagem. Em aldeias como Yuejin, onde o pai de Yang é secretário do Partido Comunista, há poucas condições para o ensino e escassez de docentes bem preparados. As famílias da cidade, mais abonadas, podem recorrer a tutores privados, pagarem cursos intensivos de preparação para os exames ou até subornarem para conseguirem chegar às melhores escolas. O sistema de quotas da universidade também afasta os estudantes que vêm dos campos, a quem são dadas menos admissões do que aos seus pares das cidades.
Os miúdos de zonas rurais precisam de ajuda reforçada, e Maotanchang dá resposta a essas necessidades. Ao princípio, a escola oferecia cursos extra de preparação para os exames, além dos já exigidos pelo currículo habitual, a baixos custos. Em 2004, quando o Governo impediu os cursos com pagamento de propinas nas escolas públicas, o poder local transformou todo o currículo escolar de serviço público exclusivamente em megacursos de preparação para os exames nacionais. (No 10.º e 11.º anos, os alunos ainda podem escolher entre duas horas semanais de música, artes ou educação física. Mas no último ano, 12.º, já nenhuma dessas disciplinas é permitida, apenas as que são dirigidas para o gaokao.) Ainda mais audazes são os cursos que foram aparecendo, cursos privados com fins lucrativos para atrair estudantes “repetentes” — estudantes que apesar de já estarem na universidade estão desesperados por subir as notas e dispostos a pagar pelo privilégio de reincidir no gaokao. Esta iniciativa teve os seus frutos. A ala dos “repetentes” situa-se no mesmo campus de uma escola secundária pública normal, usa os mesmos recursos e é agora uma das principais fontes de lucro do sistema de ensino, com mais de 6 mil estudantes que pagam valores que vão de umas poucas centenas de dólares a quase 8 mil de anuidade. (Os estudantes com as notas mais baixas são os que pagam valores mais elevados de propina — um sistema de mensalidades concebido para garantir as taxas mais elevadas de sucesso e de retorno financeiro para as escolas.) “Esta escola é muito mais rica do que se consegue imaginar”, diz Yang Qi enquanto me segura no braço e passamos pelos guardas de segurança no portão. No seu tom de voz há mais admiração do que reprovação.
Já dentro dos portões, Yang Qi mostra-me, ávido, os frutos do investimento de 32 milhões de dólares da escola: um gigantesco ecrã em LED, um complexo desportivo, estátuas enormes do camarada Mao e de Deng Xiaoping e, no cume, um faiscante edifício em forma de ampulheta — é onde funcionam os escritórios administrativos e mais parece uma torre de controlo de aeroporto ou uma torre de vigia de prisão. Os jardins são tão cuidados como se estivéssemos num campus universitário americano, apesar de num deles, com pedras decorativas, podermos ler o mote: “Não é com a inteligência que competimos, mas com o trabalho árduo.”
A nova estrutura, a mais importante, é um edifício de tijolo com cinco andares que alberga as aulas para os alunos “repetentes”. À medida que ia vendo milhares desses alunos de regresso ao edifício naquele domingo à tarde — 90 minutos é de quanto dispõem para as suas pausas semanais —, lembrei-me de como Yang se lhes referia como “os alunos mais desesperados”. São tantos os que se amontoam em cada aula — mais de 150 — que, dizem eles, os professores usam megafones de chifre para se fazerem ouvir. O rapaz que vive no quarto ao lado de Yang é um desses “repetentes” que tentaram fazer o gaokao no ano anterior. Agora estuda até às 1h30 da manhã e subiu de tal forma no ranking — 2000 lugares — que está entre os três melhores da aula. “Ele é como um fantasma. Mas só me serve de motivação porque nunca mais quero ter de passar por isto”, diz-me Yang. A mãe, por sua vez, replica: “Mesmo que falhasses, não poderíamos ter-te aqui por mais um ano.”
Eu e os pais de Yang demoramo-nos em frente à fila de dormitórios onde ele passou os primeiros dois anos que esteve em Maotanchang. Dez estudantes, às vezes 12, amontoam-se em cada quarto. A rede de arame que cobre as janelas — “para evitar os suicídios”, como mais tarde me disse um outro aluno, meio a gracejar — está pejada de roupa a secar, meias, cuecas, T-shirts, sapatos. Os dormitórios têm poucas condições — não há tomadas de electricidade ou máquinas de lavar roupa, e até há um ano, quando instalaram um quarto de banho, não havia sequer água quente. Mas há, como notam os estudantes, um aparelho high-tech: um scanner de impressões digitais utilizado pelos professores para confirmar que fizeram a obrigatória ronda pelos quartos.
Talvez no campus de Maotanchang ninguém se sinta mais motivado — e exausto — do que os próprios professores. São 500 e manter os seus postos de trabalho depende do sucesso de cada um dos alunos. Um salário-base de cada um destes professores é duas a três vezes superior aos salários médios dos restantes docentes das escolas públicas chinesas, e os bónus podem duplicar-lhes o ordenado. Por cada aluno que chega a uma universidade de primeira linha, a equipa de seis professores (há sempre um orientador e mais cinco por disciplina) partilham prémios de 500 dólares. “Conseguem um bom ordenado mas enfrentam uma pressão ainda maior do que a nossa”, diz-me Yang.
Os horários dos professores-orientadores são de tal forma exaustivos — 17 horas por dia a monitorizar aulas de 100 a 170 alunos — que a escola foi obrigada a decretar que apenas homens jovens e solteiros poderiam candidatar-se ao lugar. A competição para se manterem à tona neste tipo de trabalho é também ela intensa. Há tabelas nas paredes para mostrar o ranking das turmas de semana para semana. Para aqueles professores cujas turmas terminaram em último lugar no ano anterior, o despedimento é certo. Não admira que os métodos de motivação para os próprios professores sejam duríssimos. Além das reprimendas severas, alguns professores colocam os alunos em “desafios de morte” frente a frente — o que falhar no teste tem de permanecer de pé por toda a manhã. Num caso que deu muito que falar, a mãe de um estudante que se atrasou teve de ficar toda a semana em frente à sala de aula do filho como castigo. E para os “repetentes” os professores têm este mantra impiedoso: “Lembra-te sempre do teu falhanço.”
O mais famoso graduado da Maotanchang é um rapaz magro de 19 anos, com os cabelos a caírem-lhe nos olhos. Chama-se Xu Peng e, apesar de estar longe de parecer um masoquista, sentiu-se atraído pelo rigor da escola porque, como ele diz, “queria um lugar cruel”.
Xu foi uma das 60 milhões de crianças chinesas “deixadas para trás”. Foi criado pelos avós enquanto os pais trabalhavam como vendedores de fruta migrantes da cidade distante de Wuxi. Mas o avô mandou vir os pais para casa, na aldeia de Hongjing, quando Xu ficou fora de controlo, na preparatória — faltava às aulas, saía às escondidas com os amigos, tornou-se obcecado por jogos de vídeo. Os rendimentos da família caíram quando a mãe deixou de trabalhar para se dedicar à sua educação. Apesar de ter acalmado para agradar à mãe, Xu continuava a falhar no exame de admissão ao secundário, arruinando as suas hipóteses de entrar nos melhores liceus da região. A mãe estava tão chateada que durante dias mal falou com ele. Restavam-lhe poucas hipóteses para entrar no secundário e por isso Xu virou-se para a Maotanchang. “Eu sabia apenas que a escola era muito rígida, ao ponto de alguns alunos se terem suicidado”, disse-me. “Isso convenceu-me. Não acreditava que me disciplinasse se não fosse assim.”
Pouco depois de chegar a Maotanchang, Xu decidiu que os professores não eram suficientemente cruéis. A fixação da escola em aumentar o nível de sucesso dos seus alunos no gaokao — a sua maior bandeira publicitária — significa que os professores trabalham intensamente para levantar os resultados dos estudantes marginais para que tenham as notas necessárias para as universidades de segunda ou terceira linha. “O objectivo é pôr todos acima da linha”, afirma Xu. “Mas, se tens notas suficientemente boas para passar, eles deixam de prestar atenção.” Durante os dois primeiros anos, Xu decidiu que tinha de desenvolver o seu próprio sentido de autocontrolo. Todos os tempos livres eram passados a estudar, fazia testes a si próprio entre as aulas, na casa de banho, no refeitório. À noite, depois de as luzes se apagarem às 23h30, às vezes, usava uma lanterna a pilhas para continuar.
No seu terceiro ano na Maotanchang, quando a mãe veio viver com ele num quarto alugado na cidade, as notas dos testes começaram a subir, até chegarem ao topo do seu ano — tornou-se o primeiro entre milhares. O director de turma chamou-o à parte no início da Primavera de 2013 para lhe comunicar que ele poderia tornar-se o primeiro aluno de sempre da Maotanchang a entrar na prestigiada Universidade Tsinghua, em Pequim, conhecida como o MIT da China. Ao longo dos anos, a Maotanchang ganhou fama como uma linha de montagem para universidades de segunda linha. Agora, disse-lhe o professor, os administradores da escola estavam tão entusiasmados com a ideia de terem um aluno admitido numa das principais universidades do país que ofereciam um prémio considerável: quase 42 mil dólares para serem equitativamente distribuídos entre a família de Xu, a escola preparatória e — naturalmente — os seus professores na Maotanchang.
Antes do gaokao, Xu enclausurou-se num quarto de hotel perto do local do exame, na cidade de Lu’an, e não saiu de lá durante 48 horas. “Os meus pais acharam que eu era maluco”, conta. “Não percebiam porque é que eu me recusava a sair do quarto. Mas memorizar esta matéria é como treinar para os Olímpicos. Temos de aproveitar o momento. Falhamos um dia ou dois, e podemos perder a forma.”
Esse empurrão extra pode ter ajudado: Xu conseguiu 643 dos (nunca conseguidos) 750 pontos do gaokao. A nota mínima no exame de Ciência para os estudantes da província de Anhui entrarem na Tsinghua era de 641. Ele conseguiu por apenas dois pontos.
O feito de Xu é tão conhecido na Maotanchang que Yang fala dele como uma “figura de culto”. O espaço minúsculo que Xu e a mãe alugaram no ano passado é agora publicitado como o “quarto zhuangyuan”, uma referência ao examinando que teve a nota mais alta no antigo exame imperial. Os administradores da Maotanchang levaram-no ao campus durante o ano lectivo passado para que fizesse um discurso motivacional a 300 alunos especialmente seleccionados — os que tiveram as notas mais altas em cada turma.
Numa altura em que as massas chinesas são incentivadas a “estudar Lei Feng” — um soldado altruísta exemplar que deu a vida pela pátria —, os estudantes da Maotanchang são agora encorajados a “estudar Xu Peng”.
Quando na Primavera me encontrei com Xu no campus relvado da Tsinghua, perto do fim do seu primeiro ano, ele continuava a parecer deslocado: um jovem aldeão com um blazer gasto, as mangas puxadas para cima. Muitos dos estudantes à nossa volta eram membros da elite urbana chinesa, jovens ricos, sofisticados, armados de iPhones, cartões de passageiro frequente e algum entendimento de Harry Potter e da Teoria do Big Bang.
Xu parecia desolado. Mostrou-me o seu cartão de identificação de aluno, tirado no Outono anterior, quando a sua cara ainda era rosada e redonda. “Perdi sete quilos porque não me habituo à comida”, disse. Também foi preciso adaptar-se à vida universitária. “Aqui não há regras”, afirmou. “Durante o primeiro semestre andei confuso, porque ninguém me dizia o que fazer.”
Xu, que está num curso de Engenharia, está a aprender a apreciar coisas novas: sair com amigos, fazer voluntariado, passar fins-de-semana no parque. “Continuo a estudar muito”, precisa Xu, que pretende prosseguir os seus estudos nos Estados Unidos. “Mas agora consigo finalmente respirar.”
Quando voltei a Maotanchang em Junho, na véspera de os alunos partirem em massa para o gaokao, o céu escuro era iluminado por dezenas de lanternas de papel. As etéreas esferas laranja subiam cada vez mais alto, até formarem uma constelação de esperança. Segui o rasto das lanternas até à sua origem: um terreno vazio ao lado do portão lateral da escola. Enquanto o calor em expansão fazia levantar as lanternas do chão, acendidas por várias famílias, as orações ouviam-se cada vez mais alto. “Por favor, que o meu filho passe a linha!”, entoava uma mãe.
As lanternas luminosas erguiam-se sem obstáculos pelo ar da noite, as famílias cantavam. Mas uma lanterna prendeu-se num cabo eléctrico. A mãe de um aluno pareceu ficar devastada — porque isto, segundo a crença local, era um mau presságio, que predestinava o filho a ficar “abaixo da linha” no gaokao.
Para uma cidade que transformou o exame de preparação num acto mecânico de memorização e repetição, a Maotanchang continua a ser um lugar cheio de fé e superstição. A maioria dos estudantes tem algum tipo de talismã, quer seja roupa interior vermelha (acreditam que dá sorte), sapatos de uma fábrica chamada Anta (o logótipo faz lembrar a marca de uma resposta correcta) ou uma saqueta de chá de “rejuvenescimento cerebral” vendido por comerciantes à porta da escola. Os suplementos nutricionais que mais se vendem na cidade chamam-se Mente Limpa e Seis Nozes (as nozes são consideradas fontes de energia para o cérebro em grande parte porque a sua forma é semelhante a um cérebro).
Os pais de Yang não pareciam particularmente supersticiosos, mas pagavam uma renda elevada para viver ao lado da árvore mística e do seu monte de cinza de incenso de um metro. “Se não rezarmos à árvore, não passamos”, diz Yang, repetindo um ditado local.
No corredor do andar de cima do quarto de Yang, encontro um vidente sentado num banco, junto a uma tela com um gráfico. Por 2,8 euros, o homem com um fato às riscas que mal lhe serve pode prever o futuro: casamento, filhos, morte — e notas do gaokao. “O negócio corre bem hoje em dia”, diz com um sorriso. Um homem mais velho com corte de cabelo à Mao observa a nossa conversa. É Yang Qiming, professor de Química reformado, que me diz que assistiu ao crescimento de Maotanchang de uma escola pobre de 800 estudantes, quando foi para a faculdade em 1980, para o monstro que é hoje — uma transformação notável durante um período em que a maioria das escolas rurais entrou em declínio. Mesmo assim, aponta para os efeitos nocivos do ensino mecanizado. “Com todo este estudo, o cérebro dos miúdos torna-se rígido”, afirma. “Eles sabem fazer um exame, mas não sabem pensar por eles.”
Nessa noite, quase todos em Maotanchang pareciam estar a executar os seus últimos rituais. Duas raparigas com fardas escolares subiram de joelhos a longa escada para a estátua do Mao, curvando-se a cada passo como se estivessem a pedir misericórdia a um imperador. À frente da árvore sagrada, dezenas de suplicantes — tanto estudantes como pais — queimavam os seus últimos pauzinhos de “incenso dos campeões” e transformavam o monte de cinzas num inferno que continuaria a arder durante a noite. Na esquina, dúzias de autocarros preparavam-se para transportar na manhã seguinte mais de 10 mil examinandos de Maotanchang para o local do gaokao. Todas as matrículas dos autocarros terminavam em 8 — considerado o número da sorte na China.
Mas Yang não se sentia com muita sorte. O sorriso desapareceu-lhe da cara, juntamente com as suas observações sobre o basquetebol e o primo a quem esperava juntar-se em Xangai. A mãe dele também já se tinha ido embora. A sua ansiedade começou a deixá-lo tenso e irritável, por isso perguntou ao avô se poderia olhar por ela nas últimas semanas. Agora, só lhe restava um dia e Yang não tinha tempo para nada senão estudar. O cansaço de anos de estudo resume-se assim: “Estou quase a acabar.”
Antes da manhã seguinte, os pais de Yang vieram de carro da sua terra natal em Yuejin para apanhar o filho e levá-lo para o quarto alugado perto do local do exame na cidade de Lu’na. Eu passara a noite num hotel fora da cidade, por isso eles convidaram-me a juntar-me a eles numa boleia para Maotanchang na minivan coberta de lama que eles usam para transportar pêssegos. A carrinha (conhecida na China como mainbao che, ou carrinha pão de forma, devido à sua forma) não tinha bancos de trás. Sentei-me numa cadeira de madeira que o pai de Yang tinha trazido, agarrada na zona de carga. A mãe de Yang estava sentada em silêncio ansioso, enquanto o pai fazia as curvas, fazendo com que eu e a minha cadeira escorregássemos, falando dos pêssegos californianos que cultiva na sua quinta, a que deu o nome Grande Amor.
Os cerca de dez mil pais que vieram viver para Maotanchang farão tudo o que for preciso para aumentar as hipóteses dos filhos no gaokao. Muitas das mães, como Lin, não receberam instrução. Mas são as maiores defensoras das regras não escritas que proíbem os residentes de Maotanchang de ver televisão, lavar a roupa ou a loiça durante o período de sono dos estudantes. Quando um café cibernauta abriu na cidade, há poucos anos, constituindo uma possível distracção para os alunos, as mães ajudaram a escola num boicote que acabou por levar ao seu encerramento. Quando as notas de Yang derraparam, a mãe confiscou-lhe o telemóvel e fê-lo estudar noite fora, sentando-se ao seu lado a coser cuecas com desenhos de peixes e borboletas. Durante o dia, Lin ajustava os seus cozinhados para que coincidissem precisamente com os intervalos das aulas, para que o filho não perdesse um segundo de tempo de estudo. “Temos de fazer tudo o que podemos”, disse ela. “Caso contrário, vamos estar sempre a culpar-nos.”
Eram cinco da manhã quando entrámos em Maotanchang, mas a multidão de mães reunida à volta da árvore sagrada já era cerrada. As chamas dos seus incensos eram tão quentes e o monte de cinza tão grande que foi difícil passar para chegar ao quarto alugado de Yang. A sua mãe acendeu uns paus de incenso, enfiou-os no monte de cinza e balançou a cabeça para a frente e para trás em oração. Uma mulher ao seu lado balançava suavemente um saco com ovos no fumo — os ovos, devido à sua forma de cabeça, são considerados um símbolo de inteligência.
Yang tinha acabado de acordar quando a mãe bateu na janela. A bagagem tinha sido preparada na noite anterior — um pequeno saco para roupas, outro maior para livros — mas o avô parecia agitado. Queria ter saído mais cedo para evitar as centenas de carros e autocarros que iriam congestionar o trânsito na cidade. Mas havia ainda outra razão para a sua tensão: alguém — um responsável da escola? Um vizinho? — o tinha avisado de que ele iria ficar em apuros por estar a falar comigo. Um ano depois de a imprensa chinesa ter anunciado o seu sucesso, Maotanchang estava agora em busca de um low profile, de acordo com o apanágio chinês de que “as pessoas temem a fama como o porco teme engordar”. Agora, com uma voz trémula, o avô de Yang pedia-me que me fosse embora. Despedi-me da família e, à distância, vi-os a entrar na carrinha “pão de forma” para a última viagem de Yang para o gaokao. Ao passar por mim, o pai apitou rapidamente a buzina.
Três horas depois, exactamente às 8h08, a primeira caravana de autocarros fazia fila à porta do Liceu de Maotanchang e serpenteava à volta da multidão agitada de pais e habitantes locais. No passado, esta procissão era acompanhada pelo ribombar de tambores e fogo-de-artifício. Este ano, a celebração foi silenciosa a pedido da escola. Mas alguns rituais mantiveram-se: o condutor do primeiro autocarro nasceu no ano do cavalo, uma referência não apenas ao ano actual mas também ao ditado chinês “ma dao cheng gong”, que significa “sucesso quando o cavalo chegar”. Ao fim do dia, Maotanchang estará sem ninguém, esvaziada de estudantes, pais e comerciantes que vivem à conta deles.
Semanas mais tarde, quando os resultados do gaokao foram conhecidos, telefonei a Yang. Depois do nosso último encontro, temi que ele chumbasse — e que a minha presença fosse em parte culpada. Mas, em vez disso, Yang estava entusiasmado. Os seus resultados ultrapassaram em muito os dos exames de preparação. Não chegavam para o qualificar para uma universidade de primeira linha em Xangai, como ele chegara a sonhar, mas garantia-lhe entrada numa das melhores universidades de segunda linha em Anhui. Não há garantias de que encontre emprego quando se formar, mas está desejoso por descobrir o mundo fora de Maotanchang — e fora da sua limitada escolarização. “Estudei ciência lá, mas a verdade é que gosto de arte, música, escrita, coisas mais criativas”, disse-me. “Acho que há muitos estudantes como eu, que realmente não sabem muita coisa para além do gaokao.” Uma coisa que ele sabe realmente: a sua vida será diferente da dos seus pais na quinta Grande Amor.
Nem todas as notícias desse dia eram felizes. O amigo de infância de Yang, Cao, chumbou — um ataque de pânico, disse Yang. A família de Cao estava desfeita. A mãe passara anos a apoiá-lo nos estudos, o pai trabalhava 12 horas por dia, 50 semanas por ano, erguendo arranha-céus no Leste do país para pagar as propinas de Maotanchang. Cao falava ainda vagamente em tornar-se professor de Inglês, afirmou Yang, mas o seu futuro parecia incerto. A família nunca conseguiria pagar mais um ano em Maotanchang, e de qualquer das formas ele não tinha a certeza de o aguentar. Na verdade, só lhe restava uma opção. “Dagong.” “Ele já partiu.” Dias depois de saber que tinha chumbado no exame, Cao deixou a sua aldeia para procurar trabalho migrante nas reluzentes cidades costeiras da China. Acabaria na construção, tal como o pai.
Exclusivo PÚBLICO/ The New York Times Company