Presumível inocente

David Mamet encena em Phil Spector mais uma versão do seu teatro dialéctico: frente a frente duas versões antagónicas sobre o mesmo assunto, o caso do assassinato de Lana Clarkson.

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No entanto, nesta década, aquele que é um dos maiores actores vivos (se não o maior) acrescentou ao currículo pelo menos duas grandes interpretações, curiosamente ambas para a televisão (em telefilmes da HBO) e em ambas encarnando figuras controversas (eufemismo para “odiadas” se não houvesse quem as venerasse) da história recente dos EUA: Jack Kevorkian, o médico que advogava a eutanásia e foi responsável por mais de cem “suicídios assistidos”, também conhecido por Dr. Morte, em You Don’t Know Jack de Barry Levinson, e Phil Spector, o produtor musical, inventor do wall of sound e autor de alguns dos maiores êxitos dos últimos 50 anos. Numa comparação provavelmente abusiva, pode tecer-se um paralelo entre a percepção pública destas personalidades e da carreira de Al Pacino: um olhar descomprometido e renovado sobre quaisquer delas impõe, quando mais não seja, a dúvida.

Phil Spector

, o telefilme escrito e realizado pelo dramaturgo, argumentista, realizador e polemista David Mamet (que há uns anos renunciou o seu liberalismo por uma visão política mais conservadora, que inclui a defesa intransigente da posse legal de armas), toma o nome do seu protagonista, mas não é uma biografia que se espraie da infância à velhice do mesmo, cingindo-se, antes, a um momento muito específico da vida de Spector: o do julgamento pelo assassínio de Lana Clarkson, uma actriz de filmes série B (produções Roger Corman) a trabalhar à altura num bar, que levou para sua casa e terá morto a tiro de pistola. Este “terá” pode ser controverso, visto que os factos foram provados em tribunal (e Spector sentenciado a um mínimo de 19 anos de prisão), contudo na ficção de Mamet – e o autor é muito claro logo no início, ao enunciar que a obra é isso mesmo, ficção, e não é baseada em factos reais; pode dizer-se talvez que é uma especulação a partir de pessoas e situações conhecidas ou que foi a artimanha arranjada por Mamet para não se meter em mais chatices (e ainda assim houve protestos a tentar impedir a exibição e a premiação do telefilme) – a dúvida em relação à culpabilidade do produtor é mais do que razoável (no sistema legal norte-americano, um júri só deverá condenar alguém “beyond a reasonable doubt”.).

Depois de Race e Oleanna, Mamet encena em Phil Spector mais uma versão do seu teatro dialético, em que põe frente a frente duas versõesou opiniões antagónicas sobre o mesmo assunto. Assim, à maneira das suas peças, o filme vive sobretudo do diálogo entre o excêntrico Spector e a sua advogada de defesa Linda Kenney Baden (interpretada pela também extraordinária Helen Mirren, que passa o filme a chocar uma pneumonia), que à partida não acreditava na sua inocência. De resto, as provas circunstanciais abundavam: Phil Spector tinha por hábito brandir armas de fogo sem grande critério (no estúdio, em casa, por todo o lado); outras mulheres vieram a público revelar que haviam sido ameaçadas com pistolas por Spector; o seu motorista depôs que lhe havia confessado o crime; o produtor vivia recolhido na sua mansão em Alhambra (“o castelo do monstro”, que Linda penetra antes do primeiro encontro com o dito, a lembrar os terrores dos contos infantis) e raramente aparecia (um crime nesta época de intenso mediatismo); e, pior do que tudo, era um freak, um homem estranho e feio com “cara de culpado”, que usava extravagantes perucas para esconder a careca. A par de Linda, depois de conhecer o homem – a pessoa e não a personagem –, o espectador começa a questionar as suas certezas.

Desta forma, Phil Spector é um novo julgamento do caso Lana Clarkson, que obviamente jamais poderá substituir o verdadeiro, mas tenta sobrepor-se ao popular (representado pela filha de Mamet, Clara, que lhe atira tinta à saída do tribunal) e mediático de que Spector foi alvo. Aliás, Mamet apenas mostra o julgamento propriamente dito numa breve cena, o resto do telefilme passa-se nos bastidores: no quartel-general da defesa, onde trabalha a extensa equipa de advogados liderada por Bruce Cutler (interpretado pelo actor cómico Jeffrey Tambor, conhecido de séries como Arrested Development - De Mal a Pior), que apesar de ter livrado John Gotti da prisão desiste deste processo a meio, e há focus groups a estudarem a aceitação de Spector por parte do público (como antes das estreias dos filmes) e julgamentos de treino para preparar as testemunhas – num (no único?) momento Mamet puro, em que se encena a própria encenação, Phil Spector é chamado a depor perante a sua própria equipa, falhando largamente o teste; e a decrépita mansão do produtor, onde resta o vazio deixado pelas armas (levadas pela polícia) e os vários anos em que Spector viveu lá sozinho.

Apesar de David Mamet fazer a defesa de Spector – no sentido em que “prova” a possibilidade de a morte de Lana Clarkson ter sido suicídio ou até acidente: a tal dúvida razoável –, acaba por não dar uma sentença. Afinal, o que lhe interessa é defender a presunção de inocência para qualquer pessoa, sobretudo para aquelas que parecem mais culpadas. E, se é verdade que a HBO, tanto nas séries como nos telefilmes, vem explorando há muito assuntos “difíceis” – a eutanásia, a SIDA –, cada vez mais de fora das grandes produções cinematográficas (e mesmo das mais pequenas), novas dúvidas se levantam: desde quando a presunção de inocência se tornou num tema “fracturante”, que quase ninguém quer pegar a não ser em ficções rocambolescas?; como é que uma obra como esta, muitíssimo bem escrita por um dos maiores autores contemporâneos e encabeçada por dois dos mais actores da actualidade, não cabe no cinema? A existir a tão propalada Idade de Ouro da televisão norte-americana, encontramo-la sobretudo nesta “coragem” dos canais por cabo. 

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