Porque te deixaste vender, Lisboa, porque não te fizeste de difícil? Deixaste que pechinchássemos a tua madrugada sorrateira e as melodias que exalam solidão.
Mais do que te possuir, fiz-te minha porque quisera devolver-te aos que nunca saíram daqui mas falam da saudade como se a tivessem eles inventado. Eu que sei um segredo ou outro sobre essa dor que alimenta, quis roubar-te de ti para que visses em mim quantos horizontes são precisos colher para encher um grão de saudade.
Mais do que ser dono, queria devolver-te a curiosidade que despertaste em mim, a curiosidade que tantas vezes me desviou do caminho e me obrigou a olhar para o que estava além das colinas que te cercavam. Diferentes outros, outras línguas, outros cheiros, outros mundos.
E, já agora, quis dar-te um pouco da minha inquietude também, a urgência que me empurrou para os teus braços, e essa alucinada vontade de virar todas as páginas, transpor tudo o que carrega o signo de proibido e deixar-me levar quando é preciso. Como dois dançarinos, tão fluidos que são os seus movimentos, o seu movimento, que deixamos de aplaudir unicamente o virtuosismo de quem conduz e celebramos também a doce submissão do seu par, que graciosamente se deixa conduzir, pois sabemos que um sem o outro não existiria assim. E assim estás tu, cúmplice cidade com tanto sul.
Ah, quando a ocasião o permitir, depois do ruído passar e deixarmos de nos preocupar com o assunto moeda, deixa-me partilhar o gosto que criei por essa língua ninho, pátria até. Que fértil tem vindo a crescer mais em mim, sempre que lhe descubro uma nova palavra, perdida, reapropriada ou inventada, sempre que a oiço ser mastigada por outras bocas, outros sotaques. Para quê insistir com a lusofonia, quando é essa língua portuguesa, viva e múltipla, que nos dá tanta tesão.
Gostava de devolver, com igual cerimónia, aquelas madrugadas em que, no alto da colina de São Roque na Freguesia da Encarnação, vi nascer um país dentro de uma cidade. Uma república, com tudo o que havia de anulação e optimismo – o poema UE, doze estrelas douradas num fundo azul, África tão perto e tão longe, o medo da velhice, uma sombra que cai sobre os ombros da nação.
Depois de desembarcar na Portela, isto, antes de depositar todas as minhas economias emocionais nos teus cofres, apercebi-me de imediato que este chegar representava um reencontro comigo mesmo, e nele não cabia o rótulo de imigrante que me foi imposto. Sabia, no íntimo, que tudo aquilo que me designava realizar neste espaço estaria irremediavelmente adiado, pois ao primeiro contacto com os arquitetos dessa Lisboa invisível, sem monumentos ou glórias, nas periferias culturais e geográficas, soube então que estaria, de um só golpe, perdido e salvo.