A revolução dos Direitos da Criança

Diz-se que a riqueza das nações está no seu povo. Pode-se dizer que o tesouro de um povo está nas suas crianças. As crianças são a utopia da humanidade. O direito à educação é o mapa e a bússola dessa utopia.

A 9 de Dezembro de 1948, quando o projecto de Declaração Universal dos Direitos Humanos começou a ser debatido no plenário da assembleia geral das Nações Unidas, Eleanor Roosevelt, presidente da Comissão dos Direitos Humanos que tinha elaborado o projecto durante cerca de dois anos, disse que a Declaração Universal “pode muito bem tornar-se a Magna Carta da humanidade”. Assim aconteceu. Também a Convenção sobre os Direitos da Criança pode ser considerada a Magna Carta da Criança. É o instrumento jurídico internacional mais completo sobre os direitos da criança e único no Direito Internacional dos Direitos Humanos: é o mais extenso tratado sobre direitos humanos, aquele que mais rapidamente entrou em vigor e o mais universal, pois já foi ratificado por 194 Estados (mais do que o número de Estados-membros das Nações Unidas que, nesta data, são 193). A sua aplicação pelos Estados-partes é supervisionada pelo Comité dos Direitos da Criança que, com a adopção (em 2012) e entrada em vigor (em 2014) do Protocolo Adicional à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo a um procedimento de comunicações, ficou também habilitado a receber queixas (“comunicações”) por violação dos direitos da criança.

A Convenção sobre os Direitos da Criança representa um aprofundamento histórico do ideal libertador dos direitos humanos. Tem uma significação revolucionária, reconhecida tanto pelos seus defensores como pelos seus detractores: significa o fim da discriminação das crianças apenas por serem crianças, o fim da sua invisibilidade jurídica. É o reconhecimento de que as crianças são iguais aos adultos em dignidade e direitos, e com mais direitos ainda, dada a sua imaturidade, dependência, vulnerabilidade e necessidades de desenvolvimento. A revolução dos Direitos da Criança resume-se nesta ideia recorrente na jurisprudência internacional e nacional: uma criança não é "objecto" de propriedade de ninguém. Os direitos dos adultos relativamente às crianças são meramente funcionais, isto é, derivam das suas responsabilidades.

A espinha dorsal do corpus da convenção é o primado do interesse superior da criança. É um princípio afirmado por muitas Constituições e leis gerais sobre as crianças e os seus direitos, por vezes em termos mais fortes do que na própria convenção. Esta não o define mas, segundo o Comité dos Direitos da Criança, deve ser interpretado no seu quadro normativo, isto é, sempre de um modo compatível com o respeito da dignidade e direitos da criança. Pode ter, no entanto, um conteúdo metajurídico, cuja determinação requer o contributo de outros saberes profissionais.

O princípio do interesse superior da criança prolonga-se no princípio da prioridade das crianças, proclamado em textos internacionais e nacionais. É um imperativo das necessidades e possibilidades próprias da infância enquanto idade frágil mas crucial para o devir individual e colectivo. Por exemplo, o “plano de acção” adoptado pela Cimeira Mundial para as Crianças que teve lugar na sede das Nações Unidas, em 1990, afirmava: “Nenhuma causa merece mais elevada prioridade do que a protecção e o desenvolvimento das crianças, de que dependem a sobrevivência, a estabilidade e o progresso de todas as nações – e, no fim de contas, da civilização humana”.

Portugal teve uma participação destacada na preparação da Convenção sobre os Direitos da Criança, mas falta uma estratégia nacional global para a sua aplicação e um mecanismo de coordenação das políticas e programas correspondentes. Porque não "ressuscitar" a Comissão Nacional dos Direitos da Criança criada em 1996 e extinta em 1999? Há no mundo mais de 60 instituições nacionais análogas, com denominações e mandatos variáveis. A Assembleia da República atribuiu o seu Prémio Direitos Humanos 2014 ao Instituto de Apoio à Criança.

A revolução dos Direitos da Criança é uma revolução jurídica, com ampla ressonância no Direito da Família e no Direito da Infância, mas é sobretudo uma revolução cultural de grande alcance. Tem as mais profundas implicações no campo da educação, em particular, dada a sua essencialidade humana e centralidade na vida das crianças. Com efeito, o fundamento da dignidade humana é o valor antropológico que reside na perfectibilidade da espécie, a qual requer um aperfeiçoamento que consiste num segundo nascimento para uma segunda natureza – a natureza especificamente humana – através da educação. Um ser humano nasce para renascer. É por isso que pode ascender à sublimidade ou descer a uma crueldade de que mais nenhum animal é capaz.

O Prémio Nobel da Paz 2014 foi atribuído a uma menina (Malala Yousafzai) que se tornou um símbolo da luta pelo direito à educação. É um direito humano que suscita interrogações como estas: no tempo dos direitos da criança, como amar uma criança? Qual deve ser o critério da qualidade da sua educação, que não é um direito qualquer a uma educação qualquer? A escola que as crianças são obrigadas a frequentar é plenamente escola do direito à educação?

Diz-se que a riqueza das Nações está no seu povo. Pode-se dizer que o tesouro de um povo está nas suas crianças. As crianças são a utopia da humanidade. O direito à educação é o mapa e a bússola dessa utopia.

Procuradora da República, presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança

Professora do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa

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