Motorista de Sócrates ia periodicamente a Paris entregar-lhe dinheiro vivo

Há cerca de um ano, escutas efectuadas no âmbito da investigação aberta pelo DCIAP apanharam João Perna a falar sobre o esquema, que terá sido entretanto abandonado.

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No domingo, Sócrates regressou aos calabouços da PSP em Moscavide pelas 21h RAFAEL MARCHANTE/REUTERS

A informação resulta de escutas efectuadas no âmbito da investigação aberta pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), há cerca de um ano, em que João Perna é apanhado a falar sobre esse esquema, que, contudo, terá sido abandonado pelo antigo governante há alguns meses. Haverá também vigilâncias ao motorista que transportaria o dinheiro até à luxuosa casa que o antigo primeiro-ministro habitava no centro de Paris. 

Sócrates, que desde Janeiro de 2013 se tornou consultor da empresa farmacêutica Octapharma, recebendo pelo serviço 12 mil euros mensais,  passou a determinada altura a receber outros 12 mil euros de uma nova avença, como o semanário Sol noticiou.

Numa complexa sucessão de movimentações bancárias, o dinheiro que Sócrates detinha (não se sabe qual a origem dele, mas os investigadores suspeitam que terá sido fruto de luvas face aos indícios de branqueamento de capitais recolhidos) e que era transaccionado pelo seu amigo de infância e empresário Carlos Santos Silva passaria através de offshores para a conta do representante da Octapharma, que o entregaria a Sócrates para pagar uma falsa avença, inventada apenas para branquear o dinheiro.

A farmacêutica foi alvo de buscas na quinta-feira, como a própria empresa confirmou em comunicado, mostrando-se “totalmente disponível” para colaborar com as autoridades portuguesas.

Numa nota enviada às redacções, a Octapharma AG, a casa-mãe, com sede na Suíça, revela que as instalações da empresa em Portugal foram alvo de diligências judiciais na quinta-feira, 20 de Novembro, dia em que foram detidas as primeiras pessoas implicadas neste caso: o empresário Carlos Santos Silva, o advogado Gonçalo Trindade Ferreira e o motorista João Perna.

“Destas diligências não resultou nenhum impedimento para o normal funcionamento da empresa”, diz a Octapharma AG, garantindo que a Octapharma Portugal “prestou desde o primeiro momento total colaboração às entidades”. A empresa acrescenta a “Octapharma AG está totalmente disponível para colaborar com as autoridades, esclarecendo toda e qualquer questão que possa surgir, por parte destas, em qualquer âmbito”.

A empresa garantiu igualmente que “nenhum colaborador da Octapharma Portugal foi detido ou constituído arguido no âmbito das investigações em curso” e que, por isso, “as notícias do envolvimento da empresa com as alegadas irregularidades em investigação não têm qualquer fundamento”.

Segundo a farmacêutica, o ex-primeiro-ministro integra o conselho consultivo para a América Latina, funções que “não envolvem qualquer actividade em Portugal ou relacionamento com filial portuguesa”, sublinhando que a relação profissional entre as duas partes “sempre se pautou pelo estrito cumprimento da lei e por um vínculo contratual claro e transparente”.

Apesar de existirem escutas telefónicas no processo, a base da prova do inquérito é essencialmente de natureza documental, incluindo diversa informação bancária, o que poderá ajudar a explicar a razão pela qual Sócrates escolheu o advogado João Araújo, com uma vasta experiência em direito bancário,  para o representar neste caso.

Aliás, nas buscas realizadas na residência do ex-primeiro-ministro, no edifício da Rua Braamcamp, em Lisboa, os investigadores apreenderam vasta documentação bancária, nomeadamente extractos que poderão ser relevantes para consolidar a prova recolhida neste processo. O mesmo ocorreu numa box que Sócrates tinha alugada numa empresa em Alvalade, onde guardava documentos.

Fonte próxima do processo garantiu ao PÚBLICO que a investigação foi aturada e é consistente, fazendo crer que a detenção do ex-primeiro-ministro só foi decidida quando um extenso conjunto de provas cabais estava já reunido. Neste ponto, os investigadores tiveram cuidados acrescidos. A operação não pode, na perspectiva dos investigadores, revelar a mínima falha, até por estar em causa um ex-primeiro-ministro que passa a estar na mira da justiça.

Como a Procuradoria-Geral da República já confirmou, o inquérito teve na sua origem uma comunicação bancária feita ao abrigo da lei de prevenção do branqueamento de capitais, que terá ocorrido no final do ano passado. Depois de reunida alguma informação, o DCIAP abriu uma averiguação preventiva que terá sido convertida num inquérito já em 2014.

Até agora, os investigadores tentaram reconstituir o percurso do dinheiro, numa investigação que contou com o apoio da autoridade tributária nacional e de algumas congéneres europeias, que têm cooperado com o Ministério Público através de canais mais simples e ágeis, evitando assim o recurso às burocráticas cartas rogatórias, que implicam pedidos formais através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que depois os remete para as embaixadas do país às quais se pede cooperação internacional.

Importante terá sido igualmente o diálogo directo entre as autoridades judiciais portuguesas e francesas, às quais foram solicitadas inúmeras informações, incluindo os documentos relacionados com a compra da primeira casa que Sócrates habitou em Paris, um imóvel que, segundo o semanário Sol, terá custado 2,8 milhões de euros e sido formalmente adquirido por Carlos Santos Silva, suspeito de ser há vários anos o "testa de ferro" de José Sócrates, ajudando o político a branquear dinheiro que não poderia ser justificado por actividades lícitas.

Segundo dia no Campus de Justiça
O segundo dia de José Sócrates no Campus de Justiça durou 12 horas, com o frio e a chuva a estragarem os planos dos curiosos, com cada aguaceiro a gerar desistências. Eram 8h35 quando o antigo governante foi levado directamente dos calabouços da PSP para o Tribunal Central de Instrução Criminal, voltando para Moscavide perto das 21h.

Os outros três arguidos também chegaram praticamente a essa hora, mas têm passado as noites na Polícia Judiciária, para onde regressaram mais cedo, cerca das 19h. Quando foram detidos, na quinta-feira, ainda passaram a primeira noite no Comando Metropolitano da PSP, mas aquando da chegada do quarto arguido, na sexta-feira, tiveram de mudar de instalações.

Quanto tempo durou o interrogatório de José Sócrates ninguém disse, mas as brechas das janelas do rés-do-chão do edifício espelhado deixaram, à semelhança de sábado, perceber que o dia do juiz Carlos Alexandre foi mais movimentado.

Pela porta principal do tribunal não houve tantas entradas e saídas dos advogados João Araújo e Paula Lourenço. Mas, lá dentro, José Sócrates deixou-se ver pelo menos quatro vezes – sempre que saiu da divisão onde decorreu o interrogatório para na sala de testemunhas falar em privado com o seu advogado e consultar papéis que se pressupõe pertencerem ao processo.

A pausa mais longa teve lugar às 17h30, altura em que durante quase dez minutos andou de um lado para o outro nessa mesma sala, acompanhado do lado de fora pelo olhar, pelas máquinas fotográficas e pelas câmaras da comunicação social. Uma das interrupções coincidiu com a abertura dos telejornais.

No exterior, sobretudo na porta de acesso à garagem por onde tem entrado a maior parte dos carros e nos portões com saída directa para o Parque das Nações, o domingo foi atípico, com entradas e saídas de motos de escolta da PSP. José Sócrates continua nesta segunda-feira a ser ouvido pelo juiz Carlos Alexandre.

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