Construir cavaquinhos é uma nobre arte. Pois agora vamos conhecer os artistas
É um trabalho de fôlego que está agora a começar e resulta de um protocolo entre DGPC e a Associação Cultural e Museu Cavaquinho: inventariar os construtores no património imaterial português.
Domingos Machado, Alfredo Machado e José Gonçalves são os primeiros da lista. Agora, são entrevistados pela antropóloga Teresa Albino. Depois, segue-se um levantamento fotográfico (já em curso) e documental com vista a produzir um livro que mostre a sua realidade – “quem são, donde são e o que criam”.
Isto é apenas uma parte do trabalho da associação, que mantém e desenvolve um site bilingue, em português e inglês (www.cavaquinhos.pt), aberto à vasta comunidade de praticantes e seguidores que ele tem no mundo, uns 200 milhões. “Espero”, diz Júlio Pereira “que, a par com o afecto que a associação tem recebido pelo país fora, consigamos os apoios necessários das instituições governamentais ligadas à cultura para conseguirmos com êxito uma tão grande empreitada. Sobretudo numa Europa em crise em que cada nação deve afirmar a sua identidade, tornando-se imperiosa a consciência de que é através da cultura que a nossa alma se descobre.”
E esse apoio tem vindo, de algum modo a concretizar-se. Em Junho foi assinado um protocolo com a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), com as assinaturas (e presenças) de Nuno Vassallo e Silva, director da DGPC, e Júlio Pereira, Presidente da associação. Isto sob o olhar atento do secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier. Objectivos? Uma colaboração institucional “com vista à inscrição dos saberes e técnicas dos construtores tradicionais” no inventário do património imaterial. No site da DGPC chegou-se a ligar, numa notícia institucional, esse passo a uma eventual candidatura da prática do cavaquinho a património imaterial da UNESCO.
Paulo Costa, da DGPC, responsável (com Teresa Albino) por este projecto de investigação explica: “Uma eventual candidatura à UNESCO deve ser previamente objecto de uma inscrição no inventário nacional do património imaterial de expressões culturais relativas à prática do cavaquinho. Ora essa prática, em Portugal, envolve uma série de aspectos que têm a ver com os grupos, os intérpretes, que usam o cavaquinho nas suas composições em diversíssimos géneros musicais. Mas tendo em conta a disseminação desse instrumento por outros países (Cabo Verde, Brasil, Indonésia, Estados Unidos, particularmente no Hawai onde deu origem ao ukulele), entendeu-se que seria prioritário conhecer quem são os construtores tradicionais do cavaquinho, os que já aprenderam com os pais, avós, ou em contexto oficinal, mas que no fundo trazem essa tradição da construção da excelência deste instrumento.” Daí, quis-se “avançar para um trabalho de identificação sistemática de saber quem são estes construtores, de definir uma metodologia de pesquisa dos traços de trabalho que lhe são comuns mas também aquilo que os individualiza.”
Para Júlio Pereira, a parceria com a DGPC “é mais um importante passo a juntar às necessárias para levarmos este projecto nacional a bom porto. Nestas parcerias estão incluídas as câmaras municipais das cidades transversais à prática do cavaquinho (já assinámos protocolos com as câmaras de Braga e de Lisboa) e também a nível do levantamento nacional de músicos, grupos de cavaquinhos e locais de ensino que a associação está a fazer.”
Neste último campo, o do ensino, há já passos concretos. “A associação tem vindo a ter reuniões, no continente, com estabelecimentos de ensino de música com vista ao desenho do que será o primeiro curso para uma aprendizagem académica do cavaquinho, tendo já assinado o primeiro protocolo com a ESMAE - Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto. Há já uma parceria firmada com o Conservatório de Música de Coimbra, à qual queremos juntar os Conservatórios de Braga, de Lisboa e do Funchal, cidade onde é de louvar que o braguinha [nome que na ilha da Madeira é atribuído ao tetracórdio da família do cavaquinho] já seja estudado desde o início deste ano no Conservatório.”
Um horizonte enorme
Rui Vieira Nery, musicólogo, que em Janeiro esteve na apresentação do site e também do disco, diz agora: “A ideia de que há um processo cultural associado a este instrumento que partiu daqui, acho que merece atenção da parte das instituições portuguesas e é isso que a associação está a tentar fazer com uma série de iniciativas: exposições, concertos… Que, em princípio, poderiam levar a um segundo momento, de uma instituição que pudesse ter uma colecção própria, com exemplos dos instrumentos de toda esta diáspora, com uma escola de construção (visto que alguns construtores tradicionais estão a desaparecer), preservação da memória, da documentação e com contactos com a rede de instituições e de praticantes deste instrumento por todo o lado.”
Quanto a uma eventual candidatura à UNESCO, ele, que esteve ligado à candidatura (vencedora) do fado, tem uma posição cautelosa e mais reservada. Há muito para fazer, ainda, antes disso.
Júlio Pereira recorda, a propósito, um episódio recente: “Retive um pormenor do discurso de Carlos do Carmo na homenagem que a Câmara de Lisboa lhe prestou: quando começaram a trabalhar o universo do Fado (não sei precisar quando mas imagino há cerca de uma década) ‘havia apenas um único livro sobre fado!’. Hoje, todos nos damos conta do trabalho notável que foi feito em dez anos! Uma candidatura de sucesso, cada vez mais e melhores fadistas e guitarristas (estes, com trabalho regular) e sobretudo, um país prestigiado no mundo. E, não esqueçamos, a mais-valia económica para o nosso país através da componente turística.”
A prática do cavaquinho, sendo internacional e pluricontinental, tem, na opinião de Júlio Pereira, pontos de comparação com o fado. “Há vários pontos onde os universos do fado e do cavaquinho se cruzam. Na transportabilidade (a voz humana no fado, as dimensões reduzidas do cavaquinho), na expansão marítima, na maneira própria de nos exprimirmos e nas nossas relações com o outro. Isto para além de uma evidente complementaridade entre estes dois mundos: um mais intimista, interior, outro mais alegre e festivo. E este equilíbrio, eu diria diferença, dá-nos uma ideia mais completa do que nós, portugueses, somos.” UNESCO, no futuro? Para já, o futuro é aqui.
Um exemplo: ainda há poucos dias o Museum of Fine Arts, de Boston, através do seu curador de Instrumentos Musicais Darcy Kuronen, mostrou-se totalmente disponível para ceder à AC Museu Cavaquinho os moldes e toda a documentação referentes a um dos instrumentos da sua colecção permanente: um Cavaquinho de Lisboa do século XIX (1850-1900) construído por Jerónimo José dos Santos para que a Associação possa mandar construir uma réplica. “Como prova de gratidão, vamos oferecer um cavaquinho actual ao Museum of Fine Arts, Boston.”