Quando me mudei para Lisboa, naquela fase difícil de fim da adolescência, para ganhar uns trocados, fui fazer uns biscates numa discoteca africana no Marquês do Pombal. O espaço não oferecia nada de extraordinário; já encerrou, inclusive. Mas justiça se lhe faça: era um lugar discreto, onde os cotas iam afogar a saudade no whiskey e nas passadas do tempo do Allo Cherry, nos braços de algumas das mulheres mais bonitas que Lisboa já viu. Melhor, que duvido que Lisboa alguma vez tenha visto, porque aquele tipo de beleza só se revela depois da meia-noite.
Eu, na minha candura de rato do campo, vivia tão fascinado por aquelas filhas da lua, que passei a frequentar o espaço até nos meus dias de folga. “Wi, não dá bandeira”, diziam os sempre sensatos bar tenders, psicólogos de plantão, verdadeiros túmulos dos segredos mais cabeludos que as madrugadas lisboetas alguma vez já produziram e que, se contados, fariam corar o mais depravado dos seres, o próprio diabo incluído. Aquelas mulheres assumiam, aos meus olhos, a mesma proeminência de um monumento plantado num rotunda. Eram belas, mas não era só a beleza que me hipnotizava. Raramente lhes ouvia proferir mais do que meia dúzia de palavras: “whiskey-cola”, quando lhes anotava os pedidos, “mais gelo” ou ainda “dás-me lume?”. O que lhes conhecia bem era os lábios rasgados e os dentes a cintilarem como bolas de espelho. Isso e o ondular das ancas quando kizombavam, como dançavam.
Todos os angolanos sabem, para se dançar de verdade, as discotecas não são o lugar ideal. As festas de quintal, os casamentos, estes sim são os lugares para se dar passadas. Estava convencido disso até começar aquele biscate. Aquela discoteca não era só o santuário da nostalgia quinquagenária dos africanos naufragados em Lisboa num mar de whiskey e mulheres deslumbrantes. Era o lugar onde as melhores dançarinas de Kizomba que Lisboa já conheceu escolhiam para dançar antes de irem terminar a noite no Mussulo, que na altura era o lugar do momento.
A melhor dançarina que vi abençoar o chão daquela pista não era negra nem africana, era uma loira de Loures, linda de morrer, que dançava como uma deusa e era capaz de fazer o mais medíocre dos dançarinos, como eu, parecer o Mateus Pele do Zangado. Exagero, mas a verdade é que ela, na sua generosidade sem fundo, me dava a honra de a ter nos braços e descompassar até no mais elementar dos passos, “um dois, um dois”, que ela tornava mágicos, fazendo-me sentir o melhor dançarino do mundo, concorrendo para o primeiro lugar do Kizomba Masters.
Lisboa é, inegavelmente, uma das cidades mais africanas do mundo e dos últimos anos para cá é interessante ver o papel que a Kizomba tem vindo a assumir nesta cidade. Hoje, para onde quer que nos viremos, a Kizomba está presente. Mas não é apenas em Lisboa. Outras cidades europeias começam a aderir ao movimento. Paris, Londres, Bruxelas e Roterdão são como seria de esperar – dada a presença africana que lhes reconhecemos – lugares onde a Kizomba fora do eixo Luanda-Lisboa tem vindo a ganhar cada vez mais relevância. A maior surpresa, no entanto, cai no número de academias, encontros, festivais de Kizomba que começam a brotar um pouco por todo lado, da Europa do Leste aos Estados Unidos, da Austrália à América do Sul. Quem diria que a Kizomba, hoje o maior símbolo da cultura angolana, iria chegar tão longe. Nem eu, que até gosto de imaginar o impossível, me entreguei a tal devaneio e acredito que nos seus sonhos mais alucinados, nem Pele do Zangado, nem a sua parceira Joana Pernambuco, alguma vez imaginaram que muitos dos passos por eles criados iriam inspirar tanta gente diferente.
Quanto à loira de Loures, perdi-lhe o rasto. Parece que se casou com um jogador de futebol angolano e se mudou para Espanha...