Ninguém diz a Angélique Kidjo quem ela deve ser

É a última grande diva da música africana que faltava ao quadro de honra do Festival Músicas do Mundo. A cantora do Benim Angélique Kidjo actua amanhã em Sines, apresentando um disco que pretende recontar a História do mundo desde Adão e (sobretudo) Eva

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Angélique Kidjo saiu do Benim em 1972; hoje, aos 54 anos, continua a viver em Nova Iorque

Por não controlar cada passo da sua mulher, o pai de Angélique era frequentemente questionado acerca da sua masculinidade e justificava-se dizendo que se a mulher era feliz nalguma coisa ele devia estar a acertar. À medida que crescia, Angélique começou a exasperar-se com o facto de o pai sentir necessidade de se justificar, de se explicar perante aqueles que continuavam a abanar a cabeça em incredulidade, censurando aquela família em que não era a férrea vontade máscula a ditar e a autorizar os movimentos de cada um. Mas serviria de lição: a liberdade de um caminho implica muitas vezes o confronto com a desconfiança, a falta de entendimento e a intolerância para a diferença. É um teste permanente.

Apesar de ser uma lição que Angélique Kidjo repete sob várias formas durante uma entrevista, recordando ensinamentos parentais como alicerces para a sua recusa absoluta em deixar-se aprisionar por aquilo que terceiros possam pensar, projectar ou esperar da sua vida e de cada uma das suas acções, também as capas dos discos que circulavam em casa desde pequena foram responsáveis por perceber que não havia portas trancadas para a crescente vontade de se entregar por inteiro à música. Os irmãos mais novos da cantora aventuravam-se já com bandas e os pais acreditavam que o desporto e a música ajudavam a edificar personalidades mais sólidas e preparadas para lidar com os outros, mas seriam as capas dos LP a abanar-lhe as certezas e a mostrar-lhe que o mundo exterior podia ser mais consonante com o seu mundo interior. “Esses álbuns que os meus irmãos traziam para casa vinham da América ou da Europa”, recorda. “E tinham quase sempre homens brancos na capa, ou então, em menor número, homens negros. Lembro-me que a primeira vez que vi uma mulher negra foi a Aretha Frankin, a cantar em inglês, e pensei ‘Uau, uma afro-americana pode ser artista, mesmo sendo mulher’. Quando se é mulher em África e se canta música que não é tradicional, é-se considerada prostituta.”Na altura, era essa a regra que encontrava nas ruas e no universo próximo.

Tudo mudou quando Kidjo percebeu que já alguém ousara, antes de ela pensar verdadeiramente em fazê-lo, furar essas convenções esburacadas e desde sempre caducas. Ao ver-se diante da capa de Pata Pata, álbum publicado pela sul-africana Miriam Makeba em 1967, as peças do futuro da jovem cantora reordenaram-se num segundo. “Aquilo deu-me a volta à cabeça!”, garante. “Se ela conseguiu fazer isto, então eu também vou conseguir, ninguém me vai impedir e vou fazer aquilo que quero.”

Vencido esse constrangimento moral, Angélique começaria rapidamente a travar uma outra batalha que se mantém até hoje. Parece haver em torno da sua obra, desde o início, uma obsessão de contornos quase laboratoriais para analisar a percentagem de África contida nas suas canções. Tendo crescido a ver e ouvir as rodelas de vinil de James Brown, Fela Kuti, Ebenezer Obey, Johnny Haliday, Jimi Hendrix, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Wilson Pickett e todo o santo disco que tivesse os selos Motown ou Stax a rodar no gira-discos, Kidjo enfiou desde sempre todo esse vasto referencial dentro dos seus concertos e das suas canções. “Às vezes olho para trás e pergunto-me como pode a minha memória ter absorvido tanta música”, espanta-se hoje. “Mas, na verdade, desenvolvi a minha memória a fixar todas as partes das músicas de que gostava – as guitarras, os baixos, as baterias, as segundas vozes, lembrava-me de tudo.”

Esta capacidade de se relacionar com músicas tão diferentes encontra igualmente explicação na forma como um dos irmãos mais velhos lhe desmontou os preconceitos e a fez repensar a música. De início, quando o rapaz levava música clássica para casa, Angélique reagia e falava com a boca perto do seu coração popular, dizendo-lhe “Mas que raio de música é essa? Isso é estúpido!” Em vez de a forçar a ouvir, o irmão desatou a adaptar e a tocar peças de Beethoven no banjo. E, de repente, acendeu a sua curiosidade. Daí que Angélique Kidjo se abespinhe quando ouve, uma e outra vez, que a sua música “não é africana o suficiente”. “África está em toda a música, goste-se ou não, e é impossível fazê-la desaparecer”, contraria. E ri-se quando a observação parte de europeus ou de norte-americanos rodeados de rock, pop, música electrónica – “devem achar que isso não veio tudo de África”. “A nossa música é inclusiva”, contrapõe, argumentando que a música africana não se faz difícil e se deixa espalhar por todos quantos a queiram levar consigo, independentemente de cores, línguas ou origens.

Voltar a Eva

Eve, belíssimo álbum que Angélique Kidjo lançou já este ano, rodeando-se de gente que não nega, precisamente, a africanidade da sua própria música – Kronos Quartet, Dr. John, Rostam Batmanglij (dos Vampire Weekend) ou os músicos de jazz Steve Jordan e Christian McBride –, um portento rítmico adornado com melodias que nunca se deixam abocanhar pela previsibilidade, vem já de longe, desde que em 2005 integrou a delegação de uma missão humanitária, em visita a refugiados do Darfur num acampamento instalado no Chade. Desde então, conta a cantora, a sua cabeça caída sobre a almofada nunca mais passou a significar repouso total. “Aquilo que estava acontecer era que as mulheres eram violadas sempre que saíam do campo para ir buscar lenha que lhes permitisse cozinhar a comida dos miúdos e dos homens. Os homens ficavam lá sentados, sabendo do perigo que elas corriam e não as acompanhavam para as proteger ou ajudar. Depois olhavam para elas vitimizando-as, mostrando desprezo por elas”, relata. “É horrível – ao ouvir isto, a nossa boca fica aberta e o nosso coração dói, todo o corpo dói. Somos mesmo seres humanos quando permitimos que isto aconteça aos outros?”

Esta condição da mulher africana, de sacrifício e superação de dificuldades e violências por vezes infligidas pela própria comunidade, ficou a ressoar na cabeça de Angélique Kidjo, há vários anos a braços com o trabalho da sua ONG (Fundação Batonga) em apoio da escolaridade das raparigas do continente, lutando pela erradicação do tétano ou contra a mutilação genital feminina. Nessa mesma viagem, com a UNICEF, “acendeu-se uma luz” na chegada ao Quénia. “Ao ver que aquelas mulheres lutam para encontrar comida para os miúdos e mantêm os seus sorrisos e ainda cantam, pensei como podia mostrar isto ao resto do mundo. E disse às mulheres quenianas que então encontrei: 'Quero que as pessoas oiçam as vossas vozes, quero que oiçam a alegria e a resiliência no vosso canto'.” Essas vozes, ouvimo-las logo a abrir Eve (em M’Baamba), em diálogo com a sua, justapondo-se ao seu percurso. Kidjo conta que é daqui, do encontro com estas mulheres africanas, que retira a força para “ver o melhor que existe em cada situação – é o que elas fazem todos os dias para criarem os seus filhos, para conservarem a humanidade e se manterem de pé.” E é algo que a cantora revisita mentalmente sempre que lhe dizem que, por ser africana, tem o acesso vedado a determinado programa de televisão, a apresentar-se em sítios onde não percebem a língua em que canta, enfim, de cada vez que alguém lhe sugere que pode e deve amputar um pouco da sua identidade para se adaptar a uma formatação prévia. “Sempre que me tentam rebaixar e atirar para o gueto, é nestas mulheres que penso”, reafirma.

Não há surpresas: Eve vai buscar o seu título à Eva que nos dizem ter tentado Adão com uma maçã. E aquilo para que Angélique Kidjo está, mais uma vez, a apontar é o seu sentimento de injustiça e deturpação de igualdade perante uma História do mundo que tem sido invariavelmente contada por homens. Desde a primeira mulher. “Nós aceitamos e vamos avançando”, comenta, mas tal como nos tribunais “há sempre dois lados para uma história: o lado da defesa e o da acusação. Nesta história da Humanidade, temos sido acusadas desde Adão e Eva. Não é preciso duas pessoas para haver sexo? Então porque somos culpadas por isso? Ela tentou-o com uma maçã? Adão não tinha cérebro? Adão não tinha livre arbítrio para escolher? Podemos escrever os livros que quisermos, mas essa história tem de ser contada de forma diferente ou desaparecer.”

O pai vem à conversa recorrentemente. Foi ele quem lhe ensinou que “um homem que diminui uma mulher não é um homem, é um cobarde”, e foi ele quem a empurrou para fora do país quando o Benim se transformou num regime marxista – em 1972, quando um golpe de Estado instalou Mathieu Kérékou no poder durante quase duas décadas –, em que a liberdade de expressão ficara severamente comprometida. “Se pensarmos bem, a ideologia comunista não é má de todo, mas quando uma ideologia prega e diz às pessoas o que devem fazer e não as deixa serem donas da sua vida torna-se uma ditadura”, diz, explicando a sua saída, primeiro para Paris, depois para Nova Iorque, onde ainda vive, aos 54 anos. Se tinha de ter cuidado com o que dizia – sob pena de ser encarcerada ou pior ainda –, Angélique não estava disposta a viver no seu país.

Hoje como nessa altura, a sua vida guia-se pela mesma máxima que atravessa a sua autobiografia, Spirit Rising: “Ninguém me vai dizer quem devo ser." “Ninguém tem escrito na testa em bebé que vai ser presidente deste ou daquele país, que vai ser isto ou aquilo. Claro que há circunstâncias que podem ser mais benéficas e mais fáceis para alguns porque a vida é mesmo assim, mas já alguém viu uma criança acabada de nascer com as mãos cobertas de ouro? Não, pois não?” Não, não há notícias de tal. E enquanto assim for, não contem com o silêncio de Angélique Kidjo.

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