Asexuals Project: retratos de uma comunidade em ebulição
A fotógrafa e jornalista Laia Abril está a criar um “webdoc” multimédia com testemunhos de assexuais de todo o mundo. Porque "ninguém sabe que eles existem" e, quando sabem, "têm preconceitos".
Amy, de 19 anos, gosta de “olhar para pessoas bonitas”. Só. Não lhes quer tocar, não as quer levar para a cama, não quer fazer mais nada. Está “feliz” assim. Para Michael, de 30 anos, não sentir atracção sexual é como “apreciar uma grande pintura a óleo": “Podemos gostar da aparência de alguém, podemos dizer que é muito atraente esteticamente, mas não há sexualidade envolvida.” Há mais de 40 anos, Lydia foi a uma consulta. Achava que havia qualquer coisa errada com o marido, “sempre a falar em sexo” e “a querer fazer sexo a toda a hora”. Quando recebeu o diagnóstico do médico — “o seu marido está perfeitamente bem, quem está mal é você” — não viu mais saídas. Aceitou, consentiu, obedeceu, até ao dia em que não aguentou mais: “Não, não, não! A vida é muito triste!” Hoje, com 82 anos, é assertiva: “Eu não sinto atracção sexual, não consigo e não quero!” Já não faz o que não quer. Sabe que não está errada, encontrou outros como ela. Descobriu a sua palavra: assexual.
Três histórias, três depoimentos dos mais de 20 que a fotógrafa e jornalista espanhola Laia Abril já recolheu para o seu Asexuals Project, um ambicioso “webdoc” multimédia que pode nunca terminar, tamanha é a diversidade de pessoas e narrativas. Nele, assexuais de diferentes faixas etárias, partes do mundo e vivências prestam o seu testemunho. O que é isto de não sentir atracção sexual? Como é que se vive sem sexo num universo onde o sexo está em todo o lado? Mas está tudo bem com eles? O que é, afinal, ser assexual?
Laia fez exactamente essas mesmas perguntas — e foi ao conhecer as respostas que decidiu não ficar quieta. Os seus trabalhos pessoais na área LGBT (trabalha para a COLORS Magazine) levaram-na até esta comunidade. “Pouco a pouco, ouvindo-os, percebi que era uma orientação sexual minoritária e pensei que poderia ajudá-los ao dar-lhes visibilidade”, conta em entrevista por Skype ao P3. Desde aí, desde finais de 2012, procura-os. “Não fazia sentido falar apenas com uma pessoa. Sentia que precisava de apresentar várias personagens de diferentes locais, idades, tendências. É uma comunidade muito diferente e heterogénea. E muito complexa.”
Um universo arco-íris
No reino científico, a assexualidade não é consensual. Se uns começaram por descredibilizá-la, encará-la como um comportamento ou classificá-la como síndrome do desejo sexual hipoactivo, “as últimas investigações na área da Sexologia enquadram-na como uma orientação sexual”, afirma a sexóloga Joana Almeida. “Por definição”, estabelece Laia, é caracterizada pela ausência de atracção sexual — é o que os liga. Não têm nada contra o sexo (não são anti-sexuais nem celibatários, já que não é uma opção), só não gostam, não o desejam, não é para eles. Não impede que alguns mantenham relacionamentos íntimos com outras pessoas, experienciem relações românticas, se masturbem ou, até, tenham sexo por outras razões que não a atracção sexual. Não é um mundo a preto e branco, antes arco-íris, com conceitos próprios, onde a a atracção sexual e a atracção romântica até podem andar de mãos dadas, mas em faixas separadas.
No campo da atracção sexual, se um demissexual só experiencia desejo depois de ter uma ligação emocional forte com alguém, um grey-assexual situa-se algures entre a assexualidade e outras orientações, pois até pode sentir atracção sexual mas é algo muito raro ou pouco intenso. Por outro lado, temos a atracção romântica que leva a pessoa a desejar uma relação afectiva. Quando é direccionada para um género em específico é considerada uma orientação romântica, que em nada tem a ver com a orientação sexual — são os assexuais hetero-românticos, homo-românticos, bi-românticos, etc. Os arromânticos não sentem atracção romântica e os grey-românticos até podem sentir mas, mais uma vez, é algo muito raro ou pouco intenso. Em todas estas equações são utilizados, então, os prefixos a/hetero/homo/bi/pan/poli. Portanto, retomando o início do texto, os três são assexuais, mas Amy é grey-romântica, Michael é arromântico e Lydia é hetero-romântica.
“Uma das coisas que mais abriu a minha mente foi como eles vivem de forma diferente a atracção sexual, da atracção romântica, da sexualidade pessoal”, confessa Laia. “Na minha mente, como para quase toda a gente, romantismo e sexualidade é uma grande confusão. (…) É muito interessante quando as pessoas as separam. Lembro-me de alguém me perguntar: qual é a diferença entre uma amizade muito próxima e uma relação assexual romântica? Espera um momento… mas claro que há uma grande diferença! Eu vi-os e há obviamente uma grande diferença.”
“Como é que eles são?”
De entrevista em entrevista, a fotógrafa de 28 anos apreendeu tudo isto. As primeiras pessoas foram encontradas pela Internet, claro, o “ambiente” por excelência dos assexuais, o meio que amplificou algo que até então era silencioso e individual. “O Google é o melhor amigo da assexualidade”, refere Rita Alcaire, investigadora e a grande impulsionadora da página Assexuais em Portugal. “Enviei milhares de e-mails. Fiz-lhes mesmo ‘spam'”, graceja Laia. Recebeu “nãos”, mas também muitos “sins”. Precisamente por se tratar de uma comunidade jovem — só em 2001, com a criação da organização Asexual Visibility and Education Network (AVEN) e do início de algum activismo, online e offline, pelo norte-americano David Jay, é que os assexuais se começaram realmente a encontrar e organizar — a visibilidade é algo que procuram. “Entendem que têm de encarar os média porque há um grande mal-entendido sobre o que é a assexualidade. Primeiro, as pessoas nem sabem que eles existem. Depois, [quando sabem] têm muitos preconceitos.”
Perguntavam-lhe, por exemplo, como é que “eles” eram, qual era a aparência. Daí a importância de fazer um projecto visual, que cria “visibilidade literal”, e que acaba por se tornar uma “marca” da comunidade. Daí a necessidade de recolher diversos testemunhos de pessoas totalmente diferentes. Daí não ter um fim definido — é uma comunidade em ebulição e a “representação tem de ser justa”. Todos os dias há novos conceitos, novas histórias, outros cinzentos. “É uma plataforma orgânica: eles mudam e eu também tenho de mudar.”
Todos os assexuais são convidados a participar no Asexuals Project que, tal como eles, está na Internet. Laia tem recebido contactos de todo o mundo, até mesmo de Abu Dhabi. Mas como é que se chega lá sem financiamento? Já falou com pessoas de Itália, onde vive, e Reino Unido. Conseguiu ir com a sua equipa (“É importante dizer que trabalho com muita gente e eles trabalham de borla para um trabalho que eu persigo”) até Nova Iorque, o berço da comunidade, onde entrevistou o “pai” David Jay, que, com a AVEN, apoia o projecto. No horizonte pode estar uma campanha de crowdfunding para arrecadar fundos e, quem sabe, um livro ou um fanzine.
O que os move? Se, para Laia Abril, é “importante que a assexualidade seja aceite pela sociedade”, para os próprios, diz, é fulcral que “os assexuais que não sabem que a assexualidade existe o saibam”. “Eles”, aponta, a princípio, “nem sentem que são os únicos porque nem sequer sabem que são alguém, que são alguma coisa”. “Sentem que estão errados, que se passa alguma coisa com eles, talvez estejam doentes; muitos já foram a médicos, psicólogos (...). Deve ser muito perturbador sentires que há qualquer coisa errada contigo a toda a hora.”