Assexuais: não sentem atracção sexual e são felizes assim
Há quem não sinta atracção sexual. Não, não estão doentes, não têm traumas nem têm medos. A assexualidade é uma orientação sexual que começa agora a ser falada em Portugal
A pergunta de Marta Cardoso, de 18 anos, desarma qualquer um. É assexual, isto é, não sente atracção sexual. E está muito bem com isso. Mesmo ao viver numa sociedade, sexualizada, onde se rematam conversas com o dito “nada é melhor do que sexo”, fazem-se listas de leitos (e de feitos) e folheiam-se revistas onde, publicidade-sim, publicidade-sim, há referências eróticas. Conversar com Marta e contactar com a comunidade assexual é virar esse mundo do avesso. Aqui, o ditado é “cake is better than sex” [bolo é melhor do que sexo, numa tradução livre] — por isso, cada novo membro dos fóruns e sites de grupos assexuais é, geralmente, agraciado com uma imagem de um bolo. Querem melhor boas-vindas do que essa?
Marta estava a pesquisar para um trabalho de Biologia quando, há dois anos, deu de caras com o site da organização Asexual Visibility and Education Network (AVEN), a primeira e a maior comunidade virtual de assexuais do mundo — conta com mais de 60 mil membros — criada em 2001 pelo activista norte-americano David Jay. “Ao ler a descrição, percebi que era exactamente assim que me sentia. Não foi propriamente uma descoberta, foi mais uma identificação.” Até então apresentava-se como pansexual (atracção por todos os géneros), mas, na verdade, não se recorda de alguma vez ter sentido atracção sexual por alguém. Na escola, e agora na universidade (estuda Engenharia Informática, um meio caracteristicamente masculino), habituou-se a ouvir colegas elogiar os atributos masculinos e femininos alheios com o clássico “ele é todo bom/ela é toda boa”. Leva-o “na desportiva”, confessa ao PÚBLICO via Skype — não repara nisso, nem nunca experienciou esse impulso físico por alguém.
Nem em relações. O relacionamento recente com a ex-namorada, dita “sexual”, foi “conturbado”, confessa. Apresentou-se como assexual, mas, “pelo desejo de ver o outro satisfeito e feliz”, acedeu em ter experiências sexuais — alguns assexuais têm sexo por outras razões que não a atracção sexual, como neste caso. Não funcionou. “Eu não estava à espera que fosse assim tão… vazio. O meu corpo responde a estímulos, o que é normal. Sinto prazer normalmente, mas ao ter que retribuir é quase uma obrigação. (…) Quando não se tem desejo, pelo menos para mim, é extremamente entediante.” Foi “um balde de água fria” não se sentir confortável em corresponder. Depois surgiram os problemas. “Até hoje não sei se ela chegou a compreender que a minha falta de desejo não estava relacionada com o quanto eu gostava dela.”
Não é uma opção
O universo da assexualidade não é preto e branco, antes arco-íris. Dentro da Sexologia, ainda só foi alvo de “estudos exploratórios”, explica a sexóloga Joana Almeida, responsável pela Consulta de Sexologia. As últimas investigações estão a “enquadrá-la como uma orientação sexual”, o que ainda assim não é consensual — “alguns consideram parte de um comportamento sexual”. “Não é uma opção, não é uma escolha”, diz a também psicóloga. E também “não é uma questão hormonal, uma doença crónica”: “São pessoas de todo o género e são pessoas que quando conhecem a definição que os movimentos sociais têm feito — não sentir atracção sexual, não sentir a necessidade de ter uma vida sexual muito activa com outra pessoa — reconhecem-se.”
O Asexuals Project, webdoc, da autoria da fotógrafa e jornalista espanhola Laia Abril, apresenta testemunhos de assexuais de todo o mundo e comprova que o que os liga é a ausência de atracção sexual. Depois existem várias identidades dentro da assexualidade. Alguns mantêm relações íntimas e afectivas, alguns masturbam-se, alguns sentem desejo só quando têm uma relação emocional forte com outra pessoa, alguns sentem atracção romântica — apaixonam-se, querem uma relação, mas sem actividade sexual. Os conceitos de orientação sexual e orientação romântica são, então, diferenciados. E, a par e passo, há novos conceitos a serem criados e inventados, num espaço de liberdade total.
“Uma das coisas que mais abriu a minha mente foi como eles vivem de forma diferente a atracção sexual, da atracção romântica, da sexualidade pessoal”, confessa Laia. “Na minha mente, como para quase toda a gente, romantismo e sexualidade é uma grande confusão. (…) É muito interessante quando as pessoas as separam.”, nota Laia Abril.
Marta considera-se “wtf romantic”, um termo criado online que, basicamente, designa alguém que ainda não tem bem esclarecido onde se insere no espectro da atracção romântica, e que espelha bem duas características muito fortes da comunidade: o sentido de humor e a forte presença online.
Lá por não sentir atracção sexual não quer dizer que não sinta prazer — só não é direccionado a alguém. Sim, já se masturbou. Já o fez mais, já o fez para adormecer, agora está numa fase de “desinteresse”. “É focado em nós. É uma acção mecânica. Eu nas minhas fantasias nunca fantasio com pessoas. É mais uma concentração no próprio prazer.” É “simplesmente uma maneira de viver”, naturaliza Joana Almeida. “Os assexuais podem ter comportamentos de masturbação e isso chega para viverem a sua sexualidade.”
És nova, é só uma fase"
Os amigos mais próximos de Marta sabem que é assexual. O pai também. Identifica-se “sem quaisquer problemas” — a questão é que as pessoas não sabem o que é a assexualidade. “Em termos de conversa casual, não me sinto propriamente confortável em revelar isso pela quantidade de explicações que tenho de dar às pessoas.” “Normalmente”, depois de descrever, chovem perguntas e opiniões: “Mas como é que isso é possível?” / “Se calhar só tiveste más experiências.” / “Isso não existe.” / “És nova, é só uma fase.”
Até pode ser uma fase, diz descontraidamente Marta. “A sexualidade é fluída, está sujeita a mudanças. Posso sentir que sou assexual a minha vida, posso acordar amanhã a sentir atracção sexual ou arranjar outro termo com o qual me identificar.” Aliás, para Marta, os “rótulos só deveriam existir como uma forma mais prática de encontrar pessoas que se identifiquem da mesma maneira”. “É muito difícil se eu, por exemplo, em vez de dizer pizza, estiver sempre a dizer ‘um círculo de massa cozinhada com um topping de ketchup e uma série de outros ingredientes’.” O “problema”, diz, é que essas considerações carregam preconceitos às costas. “Dizem ‘é só uma fase’ com esperança que as coisas um dia voltem ao ‘normal’. É de uma maneira depreciativa. As pessoas sentem que [a assexualidade] há-de ser um problema [de saúde] ou vir de um trauma.”
“Para eles não é sofrimento nenhum não sentir atracção sexual. A única razão de sofrimento que tenho encontrado [nas pesquisas que tenho feito] surge no confronto com a sociedade, com uma pessoa dita ‘sexual’. Aí é que se sentem estragadas, diferentes, porque os outros, pelo que dizem, não são desta maneira”, explica a antropóloga Rita Alcaire, que, com o seu doutoramento em Direitos Humanos em Sociedades Contemporâneas, acabou por dar o primeiro empurrão para aquilo que se começa a desenhar como a primeira comunidade online visível de assexuais portugueses: a página de Facebook Assexuais em Portugal, criada em Outubro. A proposta apresentada ao Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, que tem como título “A Revolução Assexual — discutindo a assexualidade em Portugal pela lente dos Direitos Humanos” e a duração de quatro anos, pressupunha, para além de escutar os assexuais portugueses, “construir ferramentas que colaborassem para terminar com o silêncio” da comunidade. “As pessoas já andavam a tentar fazer isso, não se tinham era encontrado umas às outras.”
Um ponto de partida que, entretanto, “explodiu”. Mais de 500 “likes”, presença nas diferentes marchas de orgulho LGBT que correram o país, muitas reacções positivas (e negativas, claro), várias mensagens de pessoas que se identificaram e o início de algum activismo por parte de alguns assexuais portugueses, como Marta. O “impulso para o activismo” foi logo muito forte, relata Rita numa entrevista também via Skype. “Havia muito essa vontade individual de marcar presença com alguma coisa, de contribuir para educar para a assexualidade e dar visibilidade.” Precisamente porque ninguém sabe o que é. “Não há referências explícitas ou implícitas a esta forma de viver a intimidade. As pessoas não conhecem a palavra assexualidade nem interpretam de uma forma natural que existem estas formas de viver e experienciar a vida íntima.”
Google, o melhor amigo dos assexuais
A Internet é, de um modo geral, a porta de entrada, ainda para mais tratando-se de uma comunidade que tem os seus alicerces no meio online. Assim foi com Marta. Primeiro encontrou o AVEN, mas foi noTumblr que encontrou “uma maior liberdade”: “Se a pessoa diz que é um unicórnio cor-de-rosa às bolinhas toda a gente aceita.” Também no Livejournal, uma plataforma “mais underground”, vai espreitando “certas discussões”. Com tudo isto, nunca conheceu um assexual ao vivo — talvez agora, com o grupo Assexuais em Portugal, tal se concretize.
“Costumo dizer que o Google é o melhor amigo da assexualidade”, confirma Rita Alcaire. A assexualidade não nasceu em 2001. A nível pessoal poderá sempre ter existido. É silenciosa, íntima, individual — a web foi o primeiro megafone que empunharam. Foi online que se identificaram, encontraram, organizaram. “O que eu acho é que sem Internet a assexualidade como nós a conhecemos hoje não existia. Como uma orientação sexual, uma identidade, uma comunidade organizada, e a espalhar-se desta maneira. A Internet cristalizou esse conceito.”
Noutro nível de leitura, Rita aponta para a mensagem “política” que se pode ler num movimento como este: “Desconstrói completamente a tua noção de intimidade, a tua noção de relação. (…) É uma grande chapada nesta cultura ultra-sexualizada quando há pessoas que te dizem que não têm atracção sexual. Quando há assexuais que te dizem que vêem pornografia como uma experiência estética. É extraordinário.” A sexóloga Joana Almeida concorda: “Vivemos numa sociedade tão erotizada que tratamos a sexualidade como uma obrigação. Toda a gente tem de ser uma bomba sexual. O capitalismo traz a ideia de quanto mais parceiros, melhor, por exemplo. E acho curioso que esta liberdade tenha aberto espaço para dizer ‘eu não quero isto’.”
Marta Cardoso não quer — e há mais como ela. E “não vale a pena ficar obcecado com ‘o que é que eu sou’, ‘o que é que eu não sou’”, avisa. Mais conselhos para quem se revê nestes relatos: “Ler o máximo possível, falar com outras pessoas, aprender, perceber o que os outros sentem e ver se se identifica. Se gostar de uma pessoa, ‘go for it’; se não gostar, não há problema nenhum. ” Acima de tudo: “Não stressar demasiado.” Enfim, viver.