A vida é um jogo
O arquivo da Santa Casa da Misericórdia é o ponto de partida para uma exposição que procura dar visibilidade ao que normalmente não faz a grande história: os anónimos e as franjas sociais que estão no centro do trabalho da instituição.
“Quem diria que temos cartas de jogar no arquivo?”, diz, sem ironia, Francisco d’Orey Manoel, director do arquivo histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Se a origem desse meio valete fosse um mistério, não seria um objecto tão irresistível quanto é conhecendo a sua história: a carta foi deixada numa misericórdia em Janeiro de 1841, juntamente com um recém-nascido e um bilhete manuscrito pedindo que o bebé fosse baptizado com o nome de Constantino.
Entre os séculos XVI e XIX, a Santa Casa da Misericórdia recebeu milhares de crianças abandonadas pelos pais na chamada “roda dos expostos” – um dispositivo que consistia numa caixa de madeira giratória, com uma única abertura (semelhante ao que hoje encontramos em alguns guichets), de forma a salvaguardar o anonimato de quem deixava a criança. O arquivo da Santa Casa contraria a ideia de que essas crianças eram abandonadas para sempre pelos progenitores: em muitos casos, elas eram acompanhadas de documentos escritos que permitiam identificá-las, e que não só indicavam a sua proveniência mas também as razões por que os pais não as podiam manter consigo. Alguns mantinham a esperança de que a separação fosse apenas temporária e manifestavam o desejo de um dia mais tarde resgatarem o seu filho ou filha. Mas como iriam reconhecer a criança ao fim de muitos anos ou provar a sua relação de parentesco? A par das mensagens escritas, muitos pais deixavam pequenos objectos juntamente com as crianças que entregavam à Santa Casa da Misericórdia, com a finalidade de servirem de prova de identificação.
O que explica como meio valete de copas e outras cartas de jogar são hoje tratados como preciosidades no arquivo histórico da Santa Casa da Misericórdia. Metade da carta era colocada junto da criança; os pais guardavam a outra metade, que poderiam apresentar mais tarde à Santa Casa, completando a peça. O corte oblíquo que dividia a carta ao meio – em vez de um corte recto – era uma forma de garantir a infalibilidade do processo: como peças de um puzzle, as duas metades apenas encaixavam uma na outra, eram irrepetíveis.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa detém a maior colecção do mundo – cerca de 86 mil – destes objectos e mensagens escritas, conhecidos como “sinais dos expostos”. É um volume invulgar porque muitas instituições nacionais e estrangeiras destruíram esses elementos por considerarem que já não possuíam qualquer interesse. “Esta é uma documentação que tem fogo. De vez em quando temos de a soltar, se não começa a berrar”, diz Francisco d’Orey Manuel. O fogo a que se refere arde sem se ver, naturalmente. Cada sinal contém informação abundante que permite reconstituir percursos de vida, em toda a sua individualidade. A clausura do arquivo é uma promessa de eternidade para esses documentos, mas também pode condená-los a um outro tipo de não-existência. Razão por que a Santa Casa da Misericórdia acaba de inaugurar uma exposição destinada a assinalar os seus 516 anos – a instituição foi fundada no mesmo ano em que Vasco da Gama chegou à Índia, nota Francisco d’Orey Manuel – e cujo tema ou ponto de partida é este arquivo. Intitulada Visitação – O Arquivo: Memória e Promessa, a exposição encontra-se no Museu de São Roque, em Lisboa, até 2 de Novembro.
“O arquivo é uma parte desta casa que não é muda. Os arquivos falam”, diz Maria Margarida Montenegro, directora da cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Paulo Pires do Vale foi o curador de arte exterior à Santa Casa convidado para conceber uma exposição centrada no acervo daquela instituição. Até aí, nunca tinha entrado no arquivo. “Pareceu-me fundamental não ir à procura de qualquer coisa determinada, mas ver, ver, ver, olhar, olhar, olhar”, explica. “A errância pelo arquivo permitiu-me descobrir coisas incríveis – em relação à história, que eu não conhecia, não apenas da Misericórdia mas do país.”
A descoberta dos sinais dos expostos, explica, foi o que o levou “a aceitar imediatamente fazer esta exposição”. “Interessou-me muitíssimo essa força da metade, essa força da parte que remete para o todo, para o outro. É uma metáfora poderosa do que é o arquivo. O arquivo também é só uma parte. É um desejo às vezes insano de totalidade, mas aquilo que ele guarda do passado é uma parte.”
Os sem-história
Uma pequena selecção de sinais de expostos integra a exposição – não apenas metades de cartas de jogar, mas uma variedade de itens, como uma trança de cabelo da mãe, tiras de tecido, um bordado (com a frase: “Triste separação, mas breve te verei.”), cautelas da lotaria, um cartão de visita de um professor de música francês, um bilhete do Teatro de Variedades, moedas, um dado de jogar em marfim, entre outros. Eles contêm nomes, indicações pessoais, vidas – não de reis e poderosos, mas daqueles a quem a Misericórdia serve, as franjas mais desfavorecidas da sociedade. Isso que normalmente não faz a grande história.
“Mais do que a história oficial, ou dos grandes acontecimentos em que a Santa Casa esteve envolvida – podíamos fazê-lo –, interessou-me trazer ao de cima estas outras pequenas histórias da História, ou dos sem-história”, explica Paulo Pires do Vale.
É uma “exposição de narrativas” aquilo que o curador propõe, mais do que uma exposição pedagógica que conta a história dos 516 anos da Santa Casa da Misericórdia.
Visitação não é um mostruário de jóias do arquivo dispostas numa linearidade cronológica como peças de museu. “O desejo não era mostrar o arquivo como um lugar morto onde as coisas acabam por ficar encerradas, mas como um motor de futuro”, diz Paulo Pires do Vale.
Certamente com a intenção de atrair outros públicos que habitualmente não visitam exposições históricas – o público que frequenta as exposições de arte contemporânea, por exemplo –, o curador estava determinado em abrir o arquivo da Santa Casa da Misericórdia à contemporaneidade. Fê-lo de duas formas: convidou artistas para criarem obras a partir do arquivo (algo que se tornou uma prática recorrente no mundo artístico nos últimos anos) e resgatou do arquivo elementos que atestam uma certa contemporaneidade. Por exemplo: um álbum de fotografias a preto e branco de aparelhos ortopédicos, provenientes dos Estados Unidos em meados do século XX. O álbum é uma espécie de catálogo técnico de diferentes aparelhos, fotografados em posição frontal ou lateral, sozinhos ou aplicados ao membro do corpo a que se destinam (mão, perna, tronco, etc). As fotografias foram usadas na formação dos primeiros técnicos do Hospital Ortopédico de Sant’Ana.
“Essas fotografias não foram feitas com propósitos estéticos ou artísticos”, diz Paulo Pires do Vale. “Mas o olhar que hoje lançamos sobre elas pode-se alterar a partir do momento em que são expostas de uma determinada maneira. Não quero transformá-las em obras de arte. O grande desejo foi mostrá-las de uma forma contemporânea, procurar que um olhar marcado pela arte contemporânea, onde tenho trabalhado mais, também traga qualquer coisa de novo.”
O curador inspirou-se no modo como muitos artistas dos anos 60-70 exploraram a serialidade e a sequencialidade e decidiu apresentar estas fotografias – sem retirá-las das páginas de cartolina preta que compõem o álbum – seguindo essa mesma estrutura (que encontramos, por exemplo, no trabalho de Cindy Sherman). “Se eu não tivesse uma relação com as obras desses artistas, se não conhecesse a arte conceptual do final do século XX, provavelmente nunca me lembraria de mostrar um álbum desta forma. Por isso é que os tempos se misturam”, diz Paulo Pires do Vale.
Um arquivo vivo
Foram três os artistas convidados a criar obras com base no arquivo. O cineasta Pedro Costa assina a instalação de vídeo Filhas do Fogo, um díptico composto por duas projecções, sem som, com rostos de duas crianças cabo-verdianas, que se reconhecem de Casa de Lava (1995), o segundo filme do realizador, rodado na Ilha do Fogo. Não é difícil adivinhar que Pedro Costa foi escolhido pela forma obsessiva como o seu cinema tem dado visibilidade a comunidades e pessoas votadas à invisibilidade dos guetos sociais (imigrantes africanos a viver em bairros degradados da periferia de Lisboa...).
A entrada na exposição é feita pela Igreja de São Roque e começa com a instalação de Costa, colocada de cada lado do transepto da igreja barroca. Expor o humano no coração de uma igreja tornou-se uma evidência a partir do momento em que Paulo Pires do Vale definiu o seu programa: “dar voz e lugar a tantos anónimos que estão na base e no centro do trabalho” da Santa Casa da Misericórdia, “nomes desconhecidos e vidas esquecidas”, que nesta exposição “ganham uma centralidade e são colocados ao lado de D. Manuel ou Grão Vasco, D. Leonor ou Brueghel”, como escreve no catálogo. Além da instalação Filhas do Fogo, Pedro Costa irá também realizar um filme sobre o arquivo, para ser mostrado no final da exposição.
Daniel Blaufuks, que tem trabalhado num território onde a memória pública e a memória privada se intersectam, foi convidado a fotografar o arquivo. “O Paulo convidou-me e eu disse que não. Depois ele disse-me que era sobre o arquivo e eu disse ‘talvez’. E entretanto fui ver o arquivo e disse que sim”, conta o fotógrafo. Mais uma vez, os sinais dos expostos produziram o seu efeito persuasivo. Com carta branca para fotografar o que entendesse no arquivo, Blaufuks escolheu os objectos que acompanhavam as crianças entregues ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia, em particular as metades cortadas. Inicialmente, a sua intenção era fotografar apenas os sinais que consistiam em fotografia: retratos dos progenitores da criança, cortados ao meio. Mas no arquivo existem apenas oito sinais de expostos que são fotografias – e que correspondem à fase final da roda dos expostos – o que “era pouco”, por isso Blaufuks alargou o campo de abordagem, concentrando-se em objectos quotidianos: papéis, medalhas, cartas de jogar, uma fotografia (a trança de cabelo foi recusada, por causa do seu carácter “quase mórbido”). No depósito da Santa Casa da Misericórdia, estes objectos são guardados num invólucro que é ao mesmo tempo uma moldura cartonada, de forma a serem expostos assim. Blaufuks insistiu em fotografá-los fora desses invólucros, resgatando-os da impessoalidade de peça de museu. “Interessava-me o lado táctil dos objectos, e transmitir a ideia de que parecem ter sido deixados ali agora e não há séculos”, explica. A sua série de fotografias, intitulada Corte, encerra a exposição.
Por fim, o compositor João Madureira escolheu uma pauta de Filipe de Magalhães (1571-1652), mestre de capela da Misericórdia, do fundo musical do arquivo, e compôs uma nova peça, Magnificat, para dialogar com ela. As duas peças serão apresentadas no final de Outubro, num concerto na Igreja de São Roque.
“Gosto que uma exposição seja um espaço de pensamento”, diz Paulo Pires do Vale. “Não vejo necessidade de separação entre tempos. Passado, presente e futuro misturam-se. Aquilo que me interessa no passado é o que permanece vivo. Toda a exposição tem a ver com esse olhar vivo, para mostrar que o arquivo é matéria que pulsa, que não é qualquer coisa fechada, morta.”
Apesar de a identidade da Santa Casa da Misericórdia estar hoje intimamente associada à exploração dos chamados jogos sociais – Lotaria, Totobola, Totoloto, Euromilhões –, Paulo Pires do Vale preferiu deixar esse aspecto de fora da exposição. “Precisamente porque a primeira coisa que as pessoas pensam quando se fala na Santa Casa é o jogo”, diz. “Preferi fugir ao que era mais óbvio.” De qualquer forma, essa dimensão não deixa de estar presente, nota, mas de uma forma indirecta, “desviante”: alguns dos sinais dos expostos são taludas da lotaria da Santa Casa da Misericórdia. Como o valete de copas, elas lembram que a vida é um jogo.