O que pretende a Alemanha?

Será que as políticas de defesa de Berlim poderão também pôr em causa a coesão da NATO, portanto a segurança e a integridade territorial dos seus Estados-membros na Europa?

Esta declaração parece surpreendente à luz dos recentes acontecimentos protagonizados pela Rússia, já que a crise da Ucrânia rompeu com o quadro de uma defesa ocidental baseada na aproximação a Moscovo e concretizada no Conselho NATO-Rússia – já denunciado na sequência da anexação da Crimeia –, o que constitui o melhor indicador dos equívocos em que a NATO viveu nos últimos anos.

A atitude russa tem sido genericamente percepcionada como a concretização da vontade de restaurar as relevantes vantagens geopolíticas perdidas com a implosão da União Soviética, entre as quais o controlo das posições estratégicas da península da Crimeia e do corredor ucraniano – uma das duas principais ligações da planície europeia às regiões de Moscovo e mar Negro e vice-versa. E mostra a sua disposição para usar a força militar com esta finalidade, como já fizera na Geórgia, o que lhe servira de ensaio para poder aperfeiçoar o seu sistema militar, aperfeiçoamentos já visíveis, como mostraram os dispositivos, as forças e as tácticas aplicadas tanto na captura da Crimeia como na pressão exercida na Região Leste da Ucrânia.

Neste contexto é difícil compreender que a Alemanha não responda positivamente ao apelo do secretário-geral da Aliança Atlântica no sentido de reforçar os dispositivos defensivos dos países-membros europeus, e assumindo a sua liderança, quando as atitudes russas tornam indispensável o regresso à missão de defesa colectiva para enfrentar a ameaça reforçada que elas representam.

Analisando as afirmações de Schäuble tendo em conta, por um lado, a realidade no terreno em termos das relações germano-russas, por outro, o seu comportamento recente em relação aos acontecimentos na Ucrânia, e, finalmente, os sentimentos ambivalentes com que certas elites alemãs olham a Rússia, tais declarações não nos surpreendem tanto como exigiria a sua lógica aparente.

É conhecida a existência de um forte entrelaçamento económico da Alemanha com a Rússia, nomeadamente no âmbito da energia, do que resultam dependências mútuas que a Alemanha parece não estar preocupada em reduzir, tendo em vista o facto de vir recusando o estabelecimento de uma estratégia energética comum europeia que outros parceiros desejam. E têm sido bem pífias as sanções económicas impostas pelos países europeus ocidentais à Rússia como resposta às suas reiteradas infracções à lei internacional na Ucrânia. Assim como são surpreendentes as relações Alemanha-Rússia, apresentadas em síntese na revista The Economist de 10 de Maio último, num artigo sobre este tão curioso tema, cujo subtítulo é precisamente “Ambivalência alemã em relação à Rússia reflecte uma identidade em conflito”.

As linhas gerais do artigo destacam a existência de uma certa russofilia em parte significativa da intelligentsia alemã, da qual os dois líderes sociais-democratas Helmut Schmidt e Schröder são exemplo: o primeiro considerou a anexação da Crimeia se não legítima, pelo menos compreensível; e o segundo, que preside à empresa gestora do North Stream (gasoduto que liga directamente a Rússia e a Alemanha), fez com que Putin se tivesse deslocado a S. Petersburgo de propósito, para abraçar o grande amigo no seu septuagésimo aniversário. Trata-se de líderes de esquerda que, segundo o artigo, seguem a tradição aberta por Willy Brandt com a aproximação ao Leste durante a guerra fria, a famosa Ostpolitik. Numa situação bem diferente da actual, convém lembrar.

A The Economist acrescenta que essa russofilia engloba o partido recentemente constituído Alternativa para a Alemanha, que advoga a saída do país do euro, e Steinmeier, actual líder social-democrata e ministro dos Negócios Estrangeiros alemão que já terá declarado a Rússia com poucas culpas do que ocorre na Ucrânia, pois se teria limitado a responder ao acordo que a UE se dispunha a fazer com esse país… Segundo a prestigiada revista, um historiador alemão explica o sentimento de russofilia como uma “mistura de sentimentalismo, nostalgia, cobardia e kitsch”, e outro considera-o como “inscrevendo-se numa longa e desagradável tradição de cooperação russo-germânica de que é exemplo o Pacto Molotov-Ribentrop de 1939”. Recorde-se que este pacto dividia a Polónia entre os dois países e dava-lhes mãos livres para agirem contra outros Estados vizinhos sem que o parceiro interferisse, o que explica as preocupações desses mesmos Estados actualmente tanto com a Rússia como com a Alemanha. E cita uma autora russa vivendo na Alemanha a referir-se a uma subtil campanha de propaganda de Putin para separar a Alemanha do Ocidente.

De tudo isto se poderá concluir que, afinal, as declarações de Schäuble não são de espantar, ao considerar o orçamento da Defesa como “uma variável de ajustamento” e não “como prioritário”, utilizando os termos que o diário francês Le Figaro emprega num dos seus recentes títulos. Ou seja, para a Alemanha não haverá qualquer problema com a assertividade bélica russa nem com a sua determinação em empregar a força militar para alterar fronteiras à revelia da lei internacional. Portanto, em vez de a NATO se dever preparar para garantir a defesa colectiva dos seus membros europeus, implantando sistemas militares capazes de dissuadir iniciativas de Moscovo idênticas às que vem efectuando na Ucrânia e a combatê-las se necessário, pode continuar como há cerca de 20 anos faz, definindo e implantando sistemas de forças em função da sustentabilidade financeira e não das ameaças previsíveis.

As políticas de austeridade orientadas pela Alemanha conduziram a União Europeia aos panoramas políticos nacionais revelados pelas eleições para o Parlamento Europeu caracterizados por alguns fortes partidos nacionalistas que, recusando o aprofundamento da integração e desejando fazer reverter a que já existe, indiciam uma forte ameaça à coesão da União.

Será que as políticas de defesa de Berlim poderão também pôr em causa a coesão da NATO, portanto a segurança e a integridade territorial dos seus Estados-membros na Europa?

Ou estará Berlim mais apostada em assegurar um poderoso eixo germano-russo, convencida de que nele imporá os seus termos, em vez de um bloco ocidental atlântico constituído pelos EUA, Canadá, e países da Europa Ocidental por si liderados, face a uma Rússia que ambiciona reposicionar-se nos termos geopolíticos vantajosos que perdeu no fim da guerra fria?

Ou pretenderá antecipar-se a uma eventual aliança russo-chinesa, aparentemente já em formação? Para, de uma forma hábil, impedir a sua concretização? Ou reforçar o seu enorme potencial em comparação com o dos Estados Unidos?

Eis a incerteza que urge esclarecer. O que é particularmente importante a países, como Portugal, para os quais a NATO constitui a aliança estrutural de segurança e, portanto, com maior necessidade de estudar e adoptar as políticas de aproximação aos futuros que considerem do seu interesse prosseguir.

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