Manifesto: amor à água

Pindorama , coreografia de Lia Rodrigues repete-se esta sexta-feira em Lisboa no Festival Alkantara e dia 1 de Junho no Porto no Serralves em Festa.

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Pindorama, de Lia Rodrigues Sammi Landweer

Pindorama, coreografia de Lia Rodrigues
Culturgest, Palco do grande auditório, Lisboa. Dia 28 de Maio. Esgotado
Quatro estrelas

 
“Com licença”, “por favor”, “posso passar?”  É com esta abordagem amistosa que 11 bailarinos, espalhados entre o público sentado no palco, iniciam o espectáculo de genuína intimidade e beleza que é Pindorama, última criação de Lia Rodrigues. Nas acções feitas em comunidade para organizar materiais e espaço – abrir uma faixa de plástico, distribuir balões de água ou limpar o chão – aparece o ritual que prepara o que vai acontecer.

É na libertação dos travões da lógica racional e seus preconceitos que podemos testemunhar e sentir intensamente esta obra que é plástica, sensorial e emocionalmente forte. Na forma como os bailarinos concertam acções para um mesmo fim evidencia-se a capacidade de acordo colectivo e uma técnica exímia de coreografia, dramaturgia e interpretação. Abundam os estímulos de formas, sons e energia que criam atmosferas intensas para os sentidos e para a compreensão intuitiva.

É fácil por isso imergir nos acontecimentos, que são intrigantes e extraordinários, como é o caso da primeira secção: deitada sobre um rio calmo, uma mulher irá conviver com uma agitação crescente, provocada pelos outros bailarinos, de correntes e ondulações opostas que se chocam violentamente no centro onde está o corpo dela, receptor do embate; neste momento extremo de relação do corpo com o seu meio, natural e social, aparece uma imagem sacrificial linda e perturbadora.

No conjunto amplo da expressão corporal patente que deriva de acções funcionais – dobrar, esticar, agitar, limpar ou posicionar – e de acções de reacção ao ambiente – tactear, deslizar, caminhar, cair, agarrar e ajustar – há uma posição recorrente: o corpo com o peito curvado sobre o chão, apoiado pelos braços perto da cabeça e as pernas abertas dobradas de lado (em linguagem técnica: uma quarta posição deitada). Esta postura, muito versátil em funções e significados, permite deslocações em plano baixo, com diferentes intensidades que se adaptam ao terreno e à circunstância, e suporta atitudes opostas de atracção ou sujeição.

Em Pindorama também se constroem críticas sobre a relação paradoxal dos seres humanos e a sua mãe natureza. Um alerta ecológico aparece quando, debruçados no chão, os corpos procuram as bolas de água espalhadas e, uma vez junto delas, as rebentam com o próprio peso provocando inundações: o desperdício da água, efeito de uma presença humana destruidora; quando o Brasil era Pindorama (palavra dos índios tupi para designar a sua terra), os seus habitantes, pelo contrário, eram parte da natureza em medida equilibrada.

A água, elemento comum no tríptico da coreógrafa Lia Rodrigues apresentado em Portugal – com Pororoca,  inspirada na onda fluvial gigante que desagua no mar (2010) e com Piracema, conduzida pela migração anual e contracorrente dos peixes para desovarem (2012) –, tem em Pindorama (2014) a representação mais simbólica e de maior protagonismo. Interpretando livremente o fim da peça, vejo esboçar-se nos corpos nus uma profecia fatalista: quando a necessidade for maior do que a possibilidade, a civilização que se antagonizou irá vergar e voltar a prestar o tributo devido a esta maravilha essencial da vida.

O espectáculo repete-se esta sexta-feira em Lisboa no Festival Alkantara e dia 1 de Junho no Porto no Serralves em Festa.

 
 

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