Precariedade laboral, emprego e desemprego
Há uma relação íntima, biunívoca, entre desemprego e precariedade do (e no) trabalho.
No PÚBLICO de 13/5/2014, a professora universitária Glória Rebelo relaciona a precariedade laboral com “o défice de inovação”, título do artigo. Entretanto, para além dessa muito preocupante relação, outras há que também carecem de (mais) atenção.
Por exemplo, o relacionamento da precariedade laboral com o incumprimento da legislação laboral (por menos condições subjectivas e objectivas de exercitação – e de denúncia de violação – de direitos por parte dos trabalhadores) e, daí, com a desregulação da concorrência empresarial.
Ou mesmo, pelas consequências da insegurança profissional, pessoal, familiar e social que gera, a relação da precariedade laboral com as condições de exercício da autonomia técnica, da ética profissional (o que tem especial acuidade em certas profissões de maior intervenção social, como, por exemplo, o jornalismo), com a organização da vida familiar (em que se inclui a conciliação trabalho-família, bem como a questão, demográfica, da natalidade), com a educação, com o exercício da cidadania (na qual se inclui não só a participação social e política mas a participação sindical), etc.
Num livro de 1998 (Contrafogos), a que a situação do mundo do trabalho tem vindo a reforçar a actualidade e a acuidade, Pierre Bourdieu sintetizava bem esta nefasta projecção social generalizada do desemprego e da precariedade laboral: “A insegurança objectiva é a base de uma insegurança objectiva generalizada que afecta hoje, no coração de uma economia altamente desenvolvida, o conjunto dos trabalhadores, incluindo aqueles que não foram ou ainda não foram directamente atingidos”.
Nunca será de mais a análise e a reflexão consequente destas e de outras projecções humanas, sociais, económicas e políticas da precariedade laboral, tanto quanto possível de forma pluridisciplinar e integrada. Objectivo que, claro, não é o deste modesto artigo.
O que aqui se pretende focar, em decurso da reflexão permitida e induzida pela observação próxima, durante dezenas de anos, de relações, situações e locais de trabalho, é não “apenas” o efeito social acumulado do desemprego e da precariedade laboral, mas o efeito da relação entre precariedade e desemprego.
Portugal é, na União Europeia, “um dos países com mais elevada proporção de contratos a termo e/ou temporários”, assistindo-se, sobretudo desde 2011, “a uma reconfiguração do mercado de trabalho que passa pela destruição de emprego permanente e aumento do emprego não-permanente”, com vínculo precário.
Na realidade, muita empresa há em que todos, mas todos, os trabalhadores são contratados a termo ou por contrato de trabalho temporário. E depois, para além das estatísticas oficiais, há que contar com a precariedade informal e ilegal, a qual agrava as consequências desta condição laboral.
Não exagerando, o trabalho precário, que legalmente devia ser uma excepção, passou, de facto, e ilegalmente, a regra. Por exemplo, também nas variantes de total clandestinidade (sem qualquer documentação, formalização ou registo legal), subdeclaração (remunerações declaradas à Segurança Social inferiores às reais), dissimulação (camuflagem da relação de trabalho com fictícia “prestação de serviços”, como nos falsos “recibos verdes”) ou subversão (ocupação, ilegal, de postos de trabalho permanentes por trabalhadores temporários ou contratados a termo).
Como escreve a professora Glória Rebelo no referido artigo, “(…) o aumento do emprego precário poderá permitir melhorar as estatísticas de desemprego a curto prazo, mas, a médio e longo prazo, terá efeitos negativos (…)”.
Um desses efeitos negativos é o de quase sempre serem os trabalhadores com vínculo precário os que, na angústia de não manterem (renovarem) o contrato a termo ou temporário, se sujeitam (são sujeitos) a mais baixos salários e mais sobreintensificação (ritmo e duração) do trabalho, bem como a piores condições de trabalho, inclusive a postos de trabalho de maior penosidade e risco para a saúde e, até, para a vida.
Mas um outro “lado lunar” desses efeitos negativos do aumento do emprego precário é a perversa relação entre desemprego e precariedade, em que, por mais absurdo que pareça, o aumento do emprego, porque precário, potencia… o aumento do desemprego.
Nas situações de emprego precário, não só os postos de trabalho são, em si, mais desqualificados como não há lógica qualificativa e profissionalizante na sua sequência, errática, empresa a empresa, em nenhuma chegando a haver integração estável. Além disso, na contratação de trabalhadores a termo ou temporários, não é a profissão que interessa mas, apenas, a tarefa temporária que é preciso “despachar”, o que esvazia as experiências profissionais do seu potencial qualificante e profissionalizante.
Tudo isto, associado às já referidas piores condições de prevenção dos riscos para a saúde (física e mental) no trabalho, leva as pessoas a perderem “empregabilidade”, isto é, condições profissionais (de qualificação e de saúde) para se (re)empregarem. E, também por isso, caem no desemprego de longa duração, crónico.
Por outro lado, agora numa perspectiva de oferta de emprego, as condições de produção (bens ou serviços) são indissociáveis da qualificação dos trabalhadores e das condições de trabalho. Ora, a precariedade do trabalho, influindo negativamente nestas duas vertentes, vai, cedo ou tarde, influenciar negativamente a produtividade e a qualidade da produção das empresas. Logo, a sua competitividade e sustentabilidade e, por essa via, a (im)possibilidade de criarem (ou, pelo menos, manterem) emprego.
É um facto que desemprego gera precariedade, até porque as medidas de “flexibilização do mercado de trabalho” que induzem o aumento do emprego precário são sempre apresentadas como medidas de “combate ao desemprego”. Mas também é facto que o aumento do emprego precário, estruturalmente, é um dos factores do desemprego.
Há uma relação íntima, biunívoca, entre desemprego e precariedade do (e no) trabalho.
E assim, afinal, muito por via da precariedade (em geral, da falta de qualidade do emprego), alimentando-se a si próprio, desemprego gera desemprego.
Por isso, com o alto nível de desemprego que se mantém, é preciso que, económica, social e politicamente, se dê mais atenção à melhoria da qualidade do emprego, designadamente, à estabilidade e qualidade das relações e condições de trabalho.
Portugal é membro fundador e ratificou quase todas as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Assim, vem a propósito deixar aqui duas inerentes referências desta organização: uma, é o conceito (central na sua acção e missão) de “trabalho digno” (decente work); outra, é uma das conclusões de um relatório (“Enfrentar a crise do emprego em Portugal”) apresentado em Lisboa, em 4/11/2013: “(…) uma melhor qualidade do emprego pode ajudar a combater o desemprego (…)”.
Inspector do trabalho (aposentado)