Nada do outro mundo

Falar de topografias poéticas a propósito de alguns dos livrinhos que Rui Caeiro vem publicando, sempre com uma discrição que parece pedir licença para se afirmar — pela elegância de um cuidado e de um respeito raros, nunca por pose estudada —, seria errar clamorosamente. Não se trata, em qualquer dos casos, da obediente platitude de um mapa, nem do entendimento da poesia como beco estreito para a forma. Porque é sobretudo como escrita, para lá de moldes, que as publicações de Caeiro encontram o seu lugar. Aquilo que o autor tem divulgado, quase sempre em plaquetes de circulação restrita, não poetiza os lugares, nem congela o poema numa cartografia estreita. Os espaços têm, pelo contrário, o dom da necessidade, como se emanassem de qualquer destino que os implicasse, como uma artéria no corpo, na constituição da própria escrita. E ambos os símiles são roubados a Caeiro — nomeadamente a Travessa dos Remolares, onde os fados se convocam e se desmentem com a mesma hipótese de verdade, e onde o vocábulo “artéria” circula num pêndulo entre a acepção biológica e a geográfica. Assim, o espaço não contribui como paisagem mas como nutriente da própria escrita.

Lendo plaquetes como No Martim Moniz com o Meu Pai ou Travessa dos Remolares, talvez se duvide destas tentativas de entendimento. Uma desconfiança bem-vinda, por exemplo, depois da leitura da brevíssima brochura Um Momento na Noite (Edição do Autor, 2011) — “Esse momento podia também acontecer ao ar livre da noite da cidade, pelas suas ruas, becos, praças e esquinas mais esquinadas, da Almirante Reis ao Bairro Alto, sem esquecer o Cais de Sodré, Intendente, Alfama, Mouraria, Alto do Pina e Poço do Borratém”. Mas já em Poesia em Verso (Livraria Letra Livre, 2007, com Afonso Cautela e Vítor Silva Tavares), Rui Caeiro metia pela Travessa dos Remolares — “No parco mostruário da Travessa esqueci-me de alguma coisa?/ Sim e por sinal do mais importante: a montra com frangos torturados no espeto,/ possível antevisão do inferno (como se a própria rua já não bastasse)/ ou então resquício dos tempos da Santa Inquisição” —, sem que a concentração naquele poiso impedisse uma leitura tudo menos literal. Seja como for, a importância dos lugares parece assegurar-se menos como deriva da divagação do que por acção da já parafraseada “simples necessidade ou, ao fim e ao cabo, uma fatalidade” — “acabamos sempre por ter que escolher um mal menor”, responde No Martim Moniz com o Meu Pai (p. 20); sendo que, em Travessa dos Remolares, a rua se agarra “à sola dos sapatos, à laia de algo que se pisou sem querer” (p. 18).

A simples atenção a tais passos autorizaria a ver nestes opúsculos nada como um guia turístico para uso poético. O que estas páginas dizem é totalmente alheio a esse descaminho. E note-se que o verbo “dizer” se usa deliberadamente. Porque estes textos, antes de mais, dizem. Daí que os vestígios de uma fraseologia franca e recta, sem marca de afectação, não sejam estratagema mas (de novo) inevitabilidade. Não que o fatalismo embale esta escrita. Podia dizer-se do seu sujeito aquilo que as suas palavras estendem: qualquer um se mostra “atento à regularidade enganosa do piso” (Travessa dos Remolares, p. 21). O que permite uma visão tão limpa de lágrimas de lirismo serôdio como de ramelas de uma secura descritiva — “Na Travessa dos Remolares bebe-se para esquecer que a Travessa dos Remolares é o que é” (Travessa dos Remolares, p. 15); “O Largo do Martim Moniz não é, pois, sítio onde eu goste de estar, ou por onde goste de passar, nunca foi.” (No Martim Moniz com o Meu Pai, p. 9). É nesse sentido que a frase é idiomática e padronizada: sem elevações deslocadas, nem paternalismos detestáveis. Ou não terminassem No Martim Moniz com o Meu Pai com um peremptório mas conciso “Mete-te na tua vida!” (p.25), e Travessa dos Remolares com um trocadilho que comprova essa trabalhosa acessibilidade das palavras — “e eu com a Travessa dos Remolares à perna, não querem lá ver? Não querem lá ir ver?” (p. 22)

Como sucedera antes — “É no inferno que penso, mas devo/ reconhecer, em abono da verdade, que não era/ no inferno que nós estávamos, era a dois passos/dele e se queres mesmo saber era agradável” (Do Inferno — Cinco Aproximações, do número 12 da revista Telhados de vidro) —, é ao Inferno que ruma certo felídeo ciclicamente recuperado por Caeiro. O Gato no Inferno recupera essa figura — “Gostar muito de um gato. Com tanta força quanto a do seu desdém.” (49 Espinhas para Um gato, Edição de Autor, 1997). O gato volta a não ser motivo literário, como não o é a paisagem rudemente urbana dos livrinhos antes mencionados. Nem Baudelaire, nem Poe nem outros cultores do gato aqui figuram: embora Pessoa, em registo quase displicente, compareça, involuntário, ao chamado — “Brincam na rua e na cama/ e também com o Fernando Pessoa/ e mais o resto”. O mesmo poeta que surgia em No Martim Moniz com o Meu Pai: ora explícito (“se o Pessoa descobriu mundo da Rua dos Douradores, também havia de o desencantar aqui”), ora espécie de ruído de fundo do texto (“Há para mim mais metafísica, isto é, mais fonte de perplexidade, nestas três perguntinhas”) ou de eco estilístico fixado num paradoxo de matriz inevitavelmente pessoana (“não sabes o que perdes — para além, é claro, de não perderes coisa alguma”). Ao contrário do gato epónimo, esta poesia “cura/ de minudências”. No sentido em que concentra as suas energias nas mais pequenas incidências, nas mais delicadas e crepitantes. Estas podem revelar-se numa primeira pessoa que poderia parecer inesperada (tanto mais que se esquiva sempre que pode: “Cabriolando à porta do inferno/ em vez de mim/ o gato”), não fosse ela a consequência da sua implicação numa escrita que nunca perde a sua natural sobriedade mais contida do que derramada (“quando me vê mia ao de leve/ como se eu fosse ainda eu/ e a casa a casa antiga”). Neste conjunto, as repetições e as analogias (de palavras e sons, como de estruturas) criam um casulo coerente para uma relação de aproximação e afastamento, de afirmação e questionação, de um eu que afirma no fugidio gato o próprio fugitivo do seu ser. Talvez não muito distante do cão de O’Neill, este gato é um animal-condição, uma afirmação, por interposto animal, da ondulante condição humana.

Condição, essa, que estará igualmente em questão em Acabamentos de Primeira. Como sucedia em títulos como Mamas (Tea For One, 2011), ou Baba de caracol (Língua Morta, 2012), o derrisório é apenas um dos caminhos da escrita, porque Caeiro se posiciona entre os sentidos mais comezinhos e os mais promissores — “os meus desfechos — os meus acabamentos” (p. 8). Tal como em Travessa dos Remolares e No Martim Moniz com o Meu Pai, não era de mapas que se tratava, em Acabamentos de Primeiranão estamos perante o apagado registo de uma cronologia. Neste opúsculo, o passado, o presente, ou os circuitos entre ambos os pólos, são apenas o pretexto gentilmente tomado à biografia — e à simulação recriada dela — para revelar o corpo e o espírito aos acabamentos das construções erguidas pelo afecto e pelo erotismo. Porque estes “acabamentos” são o rematar de enredos que se transformam e interrompem sem verdadeiramente se concluírem — “as histórias acabam e não acabam” (p. 21) —, por serem resgatadas pela memória e preservadas pela escrita — “Amores para um mesmo final, um mesmo discreto acabamento. De primeira qualidade (admitamos resignados).” (p. 23)

(Entretanto, Rui Caeiro reeditou Sobre a Nossa Morte bem muito Obrigado, Alambique [1.ª ed. &etc, 1989])?
 

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