Liberdade, servidão e o mundo das praxes
As praxes ocupam um vazio deixado pela família e pelas próprias universidades. Com maus resultados.
Maio, mês das semanas académicas, é boa altura para voltar a falar das praxes. Evitando a dicotomia do costume, o PÚBLICO lançou no seu site esta pergunta simples: “Foi praxado? Conte-nos a sua experiência”. O resultado deste trabalho é hoje publicado online (com testemunhos gravados em vídeo) e na revista 2, sintetizando mais de 250 respostas de estudantes e ex-estudantes. Contra a praxe? Não, maioritariamente a favor: cerca de 80% elogiam-na. E fazem-no apesar de relatarem episódios grotescos, deploráveis ou até assustadores. Claro que defendem que se deve punir os “abusos”, mas não classificam como abusos chamarem-lhes “bestas”, obrigarem-nos a beber mistelas intragáveis, lamber os sapatos aos veteranos, rastejar na lama ou simular actos sexuais em público. Alguns falam de momentos em que estiveram para desistir, não obedecer, cortar com aquilo. Mas não o fizeram porque queriam, nesse “sacrifício”, garantir a pertença ao grupo, evitar ficar de fora, serem olhados daí em diante como estranhos.
Uma estudante de 19 anos defende, no seu depoimento, que “a praxe ensina-nos que há uma hierarquia e que nós vamos ter de aceitá-la.” Sintomaticamente, nas famílias e nas universidades essa hierarquia foi há muito esvaziada. E é nesse vazio que a nova “hierarquia” se insinua, dizendo coisas como estas: “A besta não respira, a besta não tem direitos, a besta deve obedecer sempre ao padrinho”. Isto pretende ser um tratamento de “integração” dos caloiros, que são as “bestas”. E as “bestas”, voluntárias, dizem aceitar tal tratamento. “Há muitos caloiros que se sentem mal, choram, porque não percebem. Mas, se calhar, a nossa vida vai ser muito pior”.
Será? Imaginam-se, ao entrar numa qualquer profissão, a aceitar que o chefe lhes mande lamber os sapatos? Ou simular sexo com um colega? Ou que, pura e simplesmente, o trate por “besta” já que é novato, caloiro lá no serviço? Decerto não imaginam nem aceitariam tratamento assim. Mas aceitam-no na universidade, onde é suposto que entrem como pessoas livres. “A praxe ensina-nos isso: tens uma pessoa acima de ti, quer queiras quer não.” A questão, contudo, não é a da hierarquia. Mas sim o facto de a tal hierarquia, por incompetente que seja, ser permitido tudo, incluindo a mais ignóbil prepotência. E à “besta”, pelo contrário, tudo é proibido excepto o que lhe mandam fazer. Nas praxes, que a continuarem deviam ser obviamente reguladas, acabando de vez com os abusos, sobressai uma coisa: o facto de, quem manda, poder fazer o que quer. Um ex-estudante conta que, sentando-se num penico que julgava cheio de urina, dizem-lhe que afinal só continha chá. E era verdade. Mas o importante foi ele ter percebido que quem o mandou ali sentar podia ter lá posto urina. O poder era dele.
No Portugal de 1975, nos meses mais “quentes” do PREC, alguns soldados simularam “fuzilamentos” com os prisioneiros ao seu dispor. Vendavam-lhe os olhos e disparavam para o ar. Não mataram ninguém mas podiam tê-lo feito. E esse é o mais terrível (e perigoso) dos poderes.