Como o banco de Jardim Gonçalves escapou à supervisão durante sete anos

Em tribunal, Jardim Gonçalves diz que houve "erros operacionais" no seu banco. O Banco de Portugal, a CMVM e o Ministério Público têm uma visão diferente: o que aconteceu na maior instituição bancária privada portuguesa foi "falsificação", "manipulação" e perturbação do mercado bolsista

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Jardim Gonçalves numa conferência de imprensa do BCP em Agosto de 2007 Ricardo Brito

Em 2008, o ainda ministro das Finanças do PS Fernando Teixeira dos Santos, que fora presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, surpreendeu ao ir à Assembleia da República declarar que, no BCP, tinha sido montada, durante anos, “uma operação bem urdida para escapar à supervisão” do BdP e da CMVM, e que “as coisas foram mudadas e disfarçadas ao longo do tempo”.

Declarações fortes que geraram logo um coro de protesto, com os visados a negarem terem criado “um esquema ilícito” e a alegarem estarem a ser alvo de “vinganças” resultantes da luta de poder pelo controlo accionista do BCP, que se travou entre 2006 e 2008, e dividiu as águas na gestão.

Nos meses a seguir à abertura das averiguações, em Dezembro de 2007, seguiram-se discursos inflamados que resultaram em sanções pesadas contra os arguidos, como multas, inibição de actividade e penas de prisão até três anos. As sanções foram vistas como um sinal de que a mão da Justiça não chegava apenas aos pobres e que os ricos e os poderosos não ficavam imunes. Entretanto, a condenação do BdP a Jardim Gonçalves virou “absolvição”. O advogado do ex-banqueiro Magalhães e Silva aplaudiu a decisão, mas com críticas: “O Banco de Portugal em vez de mandar o processo para o Ministério Público demorou para ser ele a punir. Nos tribunais não houve nenhum atraso, meteu-se a politiquice no meio. O BdP auxiliou José Sócrates a tomar de assalto o BCP.”

As três autoridades (BdP, CMVM e Ministério Público) que investigaram o caso BCP imputam a todos os arguidos os mesmos actos que são consistentes, do seu ponto de vista, com duas ilegalidades: a compra e venda de acções do BCP por sociedades de paraísos fiscais mediante recurso a financiamento concedido pelo banco, sendo que as offshores polémicas pertenciam ao BCP e não a terceiros como foi declarado; ao não reconhecer nas suas contas os prejuízos das operações realizadas pelos veículos – as 17 sociedades offshore criadas para cumprir o objectivo específico de ter acções do BCP–, o banco influenciou a cotação e a evolução da bolsa.

Apesar de os factos tratados serem os mesmos, o BdP, a CMVM e o Ministério Público têm perspectivas diferentes e produziram, por isso, acusações distintas. Para o BdP os arguidos “falsificaram” as contas do BCP e, por essa razão, divulgaram informação errada ao regulador. Já a equipa de Carlos Tavares aponta para “perturbações” no funcionamento do mercado bolsista por duas vias: transacções irregulares com títulos do BCP e divulgação ao mercado de dados falsos. Por seu turno, o Ministério Público alega que houve crimes de manipulação de mercado e de falsificação, ambos puníveis com penas de prisão até 3 anos.

Mas para situações simples, as explicações também não são complexas. Para perceber o enredo descrito nas acusações aos ex-gestores do BCP é preciso recuar a um período entre Setembro 1999 e Maio de 2000, quando, no universo BCP, surgiram 17 offshores, criadas pela sucursal do banco nas Ilhas Caimão, e que, na sua configuração inicial, eram “barrigas” vazias. Estes veículos, cuja sede estava no paraíso fiscal, constituíam o único activo de quatro sociedades “mãe” que, num nível acima, eram as dominantes e não tinham beneficiários últimos (proprietários conhecidos).

Embora sem se assumir como dono, o BCP actuava como tal, mediante um contrato que lhe concedia poderes de gestão discricionária. Uma prática herdada do Banco Português do Atlântico (BPA), instituição absorvida pelo grupo nos anos 90.

Uma das primeiras iniciativas que as autoridades associam ao “esquema” BCP foi a procura de “rostos” para as 17 offshores, com o intuito de as retirar do âmbito da instituição. Bernardino Gomes, Frederico Moreira Rato e Ilídio Monteiro (clientes do BCP) surgiram como os titulares (beneficiários) dos veículos. Mas a leitura pelos investigadores dos contratos de gestão revelará outro dado: Bernardino Gomes, Moreira Rato e Ilídio Monteiro não corriam qualquer risco, pelo que não actuavam como proprietários finais dos veículos. Era o BCP que assumia o controlo.

Entretanto, entre 2000 e 2002 o BCP realiza dois aumentos de capital. E, em Outubro de 2002, as 17 sociedades de Caimão surgem inundadas de acções do BCP, adquiridas com recurso a crédito concedido pelo banco, que recebe como garantia aqueles títulos. O objectivo? Sustentar a cotação que estava a deslizar.

Na sequência do crash das empresas tecnológicas, em Maio de 2001, que gerou um quadro geral de afundamento dos preços, o BCP, que a 19 de Janeiro de 2000 se transaccionara a 5,9 euros a acção, começou a cair e, em 2002, a cotação tombava para baixo dos 4 euros, negociando-se, no ano seguinte, a 1,5 euros.

Com este cenário, as 17 offshores deixaram rapidamente de ter condições para pagar as suas dívidas ao banco, pois os activos dados em garantia já valiam menos do que os empréstimos. No final de 2002, os veículos de Caimão possuíam em carteira acções do BCP avaliadas em 312 milhões, quando os créditos totalizavam 496 milhões. Ou seja: o buraco já era de 184 milhões.

A partir daqui, a instituição foi desencadeando procedimentos, que decorreram por fases, adaptando-se aos contratempos e com a finalidade de compensar os prejuízos (e evitar revelar as imparidades).

Para “tapar” o buraco das offshores, a administração de Jardim Gonçalves reagiu, a 29 de Novembro de 2002, com um contrato de venda ao ABN-AMRO, por 136 milhões de euros, das acções do BCP detidas pelas sociedades de Caimão. O contrato previa a entrega de metade do dinheiro, ficando a outra metade representada por títulos do próprio ABN indexados à cotação do BCP e a liquidar até final de 2005.

O acordo só é divulgado a 9 de Dezembro de 2002, quando os holandeses anunciaram ter comprado 116.000.000 acções do BCP a 2,69 euros cada. A transacção, feita no mercado de balcão, dá ao ABN 4,98% do capital e os respectivos direitos de voto. Em tribunal os ex-gestores sustentaram que a perspectiva era de valorização futura o que ia permitir recuperar a dívida dos veículos.

Só que um mês antes do acordo com o banco holandês, a 30 de Outubro de 2002, o BdP, então liderado por Vítor Constâncio, escreveu uma carta a Jardim Gonçalves a solicitar a indicação, por referência àquela data, de todos os financiamentos concedidos pelo banco a offshores para a aquisição de acções da instituição.

A razão do pedido do regulador era clara: a lei não permitia a um banco ter em carteira, mesmo por execução de garantias, acções próprias representativas de mais de 10% do seu capital.

Em tribunal, Jardim Gonçalves justificou a constituição das sociedades de Caimão – através das quais as acções do banco foram adquiridas – como sendo “erros operacionais” e que, uma vez detectadas, tinham sido corrigidas pelo banco.

Em 2004, sob pressão da autoridade, a equipa de Jardim Gonçalves, (que sempre manteve a gestão discricionária das 17 offshores) dá novo passo para limpar as perdas das operações de Caimão: vai ceder os créditos a uma empresa de gestão imobiliária, a Edifícios Atlântico (que tinha o empreendimento da Baía de Luanda), tendo como contrapartida ser o parceiro financeiro desses investimentos imobiliários.

Para os arguidos, este negócio traduziu-se num acto de recuperação de dívidas, por via das mais-valias realizadas com o negócio imobiliário. Já para os supervisores tratou-se de um movimento para dissimular as perdas (evitar reflecti-las no balanço do BCP).

Destes processos há conclusões a tirar: se a cotação do BCP tivesse recuperado após 2002, as offshores não tinham registado perdas, o banco não teria de contabilizar as imparidades (prejuízos potenciais) e as infracções não teriam sido descobertas.

Para as autoridades, a questão central é que Jardim Gonçalves e a sua equipa nunca reconheceram de forma transparente o que deviam ter reconhecido: que os veículos de Caimão pertenciam ao banco. E, por esse motivo, alegam, o BCP prestou informações falsas e adulterou as contas, impedindo que os accionistas pudessem fazer um juízo verdadeiro sobre a situação patrimonial e financeira da instituição.

No meio das acusações, houve outras dúvidas levantadas: ao empolarem os resultados, os ex-gestores do BCP receberam prémios ilícitos por serem calculados com base em lucros inexistentes. Mas quer o BdP, quer a CMVM acabaram por não acompanhar esta acusação.

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