Por dia, dois arguidos escapam à Justiça por prescrição do crime
A prescrição do caso do antigo líder do maior banco privado português teve um efeito notável: conseguiu gerar um consenso absoluto no Parlamento. Todos ficaram chocados e todos querem saber se é preciso mudar as leis. Uma coisa é certa. Não se percebe qual o padrão de prescrições em Portugal
Não há dados sobre o número de prescrições nos processos de contraordenação, o que não permite perceber até que ponto o caso de Jardim Gonçalves, antigo líder do BCP – que conseguiu escapar a várias multas que totalizavam um milhão de euros por terem passado mais de oito anos desde que as infracções foram cometidas – é uma excepção. Contudo, há quem alerte para a desadequação do Regime-Geral das Contra-Ordenações que dispõe de regras comuns para infracções financeiras complexas ou para uma qualquer infracção ao Código da Estrada.
Os últimos números disponíveis dizem respeito a 2012 e mostram que nesse ano houve 752 arguidos que contornaram uma eventual condenação devido à prescrição do crime. O número representa 0,6% dos mais de 123 mil arguidos a serem julgados nesse ano e uma redução face ao ano anterior em que 912 arguidos beneficiados em virtude da prescrição de processos-crime. O número tem vindo a decrescer desde 2008, ano em que um acórdão do Tribunal Constitucional declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma que determinava que a prescrição do procedimento criminal se suspendia com a declaração de contumácia (falta deliberada do arguido em julgamento após a devida convocação) justifica o Ministério da Justiça. “[Essa decisão] fez consumir mais rapidamente o prazo de prescrição em muitos processos que terminaram nesse ano e, com menor incidência, nos anos seguintes”, acrescenta o ministério.
Apesar de o número de arguidos que escapam a uma eventual condenação durante o julgamento ter vindo a descer, os dados de 2012 estão muito longe da realidade de há uma década. Em 2003 e 2006, esses casos ficaram-se entre os 306 e os 436 arguidos. Quase metade dos casos relativos a 2012 diz respeito a "legislação avulsa" referente a crimes que não estão tipificados no Código Penal e têm um prazo de prescrição mais curto. Seguem-se os crimes contra o património (168), os crimes contra as pessoas (112) e os contra a vida em sociedade (61).
Os órgãos disciplinares dos juízes e dos procuradores não dispõem de dados sobre os magistrados punidos por terem sido considerados responsáveis pela prescrição de um processo-crime, já que as estatísticas estão organizadas pelo tipo de dever violado, o de zelo ou de prossecução do interesse público neste caso, que envolve outras situações. Mesmo assim, uma consulta dos boletins informativos do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) permitiu contabilizar 11 inquéritos disciplinares abertos em 2012 para “apuramento de eventual responsabilidade disciplinar de magistrado do Ministério Público pela prescrição do procedimento criminal” e outros quatro por atrasos na tramitação de processos, oito dos quais terminaram arquivados. Dos casos que seguiram, foi aplicada a pena de advertência em quatro, 30 dias de multa noutro e dois inquéritos foram convertidos em processo disciplinar sem que se conheça o seu posterior desfecho. Já em 2011, o PÚBLICO identificou 13 inquéritos abertos por prescrição e um por atrasos. Onze foram arquivados, um acabou com uma pena de advertência e outro com 5 dias de multa.
A Procuradoria-Geral da República não apresenta dados precisos mas estima que em média, por ano, sejam abertos 50 inquéritos/processos disciplinares. “Das participações que nos chegam, cerca de metade respeitam à violação do dever de zelo por verificação de prescrições de processos penais ou inobservância de prazos peremptórios (prazos de recurso, de contestação de acções, etc.)”, refere a procuradoria. Quanto às punições, a PGR adianta que podem ir desde a advertência, nos casos de gravidade ténue, passando pela pena de multa, nos de gravidade mediana até à suspensão de funções por 150 dias, nos casos mais graves.
As estatísticas disponíveis não esclarecem qual é o total de processos prescritos num ano. Os relatórios anuais da Procuradoria-Geral da República (PGR) também não dispõem de números nacionais, mas contém alguns dados relativos a determinadas unidades. É o caso do Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto que contabiliza 20 processos arquivados por prescrição nos mais de 42 mil movimentados em 2011. No distrito judicial de Coimbra, o único que publica há vários anos dados sobre as prescrições, em perto de 110 mil inquéritos movimentados 45 prescreveram, mais 12 do que no ano anterior. “A maior parte dos casos ficou a dever-se a participações tardias”, diz o relatório de 2011. E acrescenta: “Sempre que não está liminarmente excluída responsabilidade disciplinar de magistrado ou de funcionário judicial é feita a correspondente participação à PGR para a eventual instauração de procedimento disciplinar. Uma das medidas de gestão tomadas durante o ano respeita, precisamente, à sinalização dos inquéritos prioritários, entre os quais os que corram risco de prescrição”.
António Barradas Leitão, o mais antigo membro permanente do CSMP, realça que, naquela magistratura, os procuradores são obrigados a reportar ao superior hierárquico qualquer caso de prescrição. “Quase invariavelmente abre-se um inquérito disciplinar”, explica o conselheiro, que admite que, muitas vezes, se conclui que as responsabilidades não são imputáveis ao magistrado, mas decorrem de uma investigação prolongada nas polícias ou de atrasos dos funcionários judicias, por exemplo, nas notificações. “Quando há culpa do magistrado há sempre punição”, assegura, reconhecendo que este ano e o ano passado tem havido muitos inquéritos disciplinares abertos por prescrição.
Barradas Leitão reconhece que, por vezes, os procuradores podem não comunicar a prescrição de um caso, sem que se descobra a eventual infracção no ano seguinte, prazo em que a própria violação disciplinar prescreve. Por isso, defende que o prazo de prescrição da infracção disciplinar deve ser contado não a partir da prescrição de facto, mas apenas a partir do momento em que o procurador a declarou ou, não o tendo feito, até se encontrar numa situação de o poder fazer. “Foi pedido recentemente um parecer jurídico ao procurador que representa o conselho no Supremo Tribunal Administrativo, que analisa as impugnações das nossas decisões”, adianta.
Já Albertina Pedroso, do Conselho Superior da Magistratura, explica que o órgão disciplinar dos juízes não tem uma base de dados informatizada que permita saber quantos processos existem neste âmbito. “Mas, normalmente, quando se analisam casos de prescrição, concluiu-se que a responsabilidade não é do juiz”, nota.
Nos corredores do Parlamento já se fala muito de alterações legislativas na área das prescrições, mas o Ministério da Justiça garante que não está a preparar nenhuma alteração sobre o tema. “A única coisa que pode ter impacto a este nível é a revisão do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, uma alteração que está a ser preparada com o Banco de Portugal há algum tempo e nada tem a ver com casos concretos”, garante uma porta-voz do ministério.
O professor catedrático de Direito Penal da Universidade de Coimbra, Manuel Costa Andrade, lembra que as prescrições existem em todos os ordenamentos jurídicos porque “passado um período longo sobre o crime, a Justiça que se faz já não é Justiça”. “A Justiça também tem um tempo”, realça, lembrando que tal acontece no direito penal, mas igualmente no civil com a prescrição das dívidas. “As relações jurídicas não são eternas. O tempo é um factor de erosão das relações jurídicas, da memória colectiva e até da identidade do alegado criminoso”, sublinha. Apesar disso, o universitário defende que era importante perceber a dimensão deste fenómeno em Portugal e compará-lo com a situação de outros países. Avesso às mudanças de legislação sob pressão, o professor sustenta que, “muitas vezes, é preciso mudar práticas”, dando, por exemplo, mais meios quer às autoridades administrativas que aplicam as contra-ordenações, quer às autoridades policiais que investigam crimes.
O presidente da Associação de Advogados Penalistas, Paulo Sá e Cunha – que participa amanhã, em Lisboa, numa conferência sobre o tema “O Instituto da Prescrição no Estado de Direito Democrático”, concorda. “Considero os prazos de prescrição razoavelmente longos, tanto a nível criminal como a nível contra-ordenacional”, afirma. O advogado acredita que é preciso actualizar o Regime Geral das Contra-ordenações que não é revisto desde 2001, mas não a reboque de casos concretos. “Este regime prevê as mesmas regras para contra-ordenações menos graves, como multas de trânsito, e para infracções complexas, como as que estiveram em causa no caso do BCP, que são uma realidade nova que apareceu após a queda do Lehman Brothers, em 2008”, realça Paulo Sá e Cunha. Já relativamente à prescrição de crimes, o especialista entende que a última alteração, que entrou em vigor o ano passado, foi longe de mais ao suspender o prazo de prescrição sempre que existe uma condenação na primeira instância. “Foi uma lei a pensar no caso Isaltino Morais. Na teoria, o novo regime permite que haja casos que só prescrevam ao fim de 40 anos, o que é um absurdo”, sublinha. E completa: “A tendência tem sido ampliar os prazos de prescrição, aumentar as causas de interrupção e suspensão dos mesmos e restringir as possibilidades de recurso”, nota Sá e Cunha, que acredita que, muitas vezes, estas alterações têm efeitos perversos.