Pelo direito de cada criança à sua família

Deixando de lado extremismos, esta questão é, na realidade, particularmente simples.

O próprio comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa escreveu ao Parlamento, explicando que esta era a oportunidade de cumprir o que já foi identificado como uma obrigação decorrente da Convenção Europeia de Direitos Humanos. O comissário alertou para a decisão clara do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que condenou a Áustria (que teve que alterar a sua legislação) e que aponta os restantes países que violam, portanto, a Convenção ao não permitirem a coadoção em casais do mesmo sexo: a acompanhar Portugal estão apenas a Rússia, a Roménia e a Ucrânia.

Aliás, também o embaixador dos EUA em Portugal congratulou publicamente o nosso país pela aprovação da lei na generalidade, afirmando a importância da "legislação que permite a um membro de um casal do mesmo sexo adoptar os filhos do seu cônjuge, o que irá fortalecer o núcleo familiar".

Por sua vez, em audição no Parlamento, o bastonário da Ordem dos Psicólogos apresentou o documento elaborado pela Ordem que explicita aturadamente o consenso científico no que diz respeito à parentalidade em casais do mesmo sexo e que recomenda inequivocamente o fim das diversas discriminações neste âmbito.

Ou seja, deixando de lado extremismos, esta questão é, na realidade, particularmente simples.

Se uma criança é criada por duas mães ou dois pais e tem apenas uma figura parental reconhecida na lei, passará a ser possível que, mediante uma sentença judicial para cada caso concreto, a criança possa passar a ver reconhecidas as duas figuras. Ambas poderão assim finalmente ter acesso aos direitos que permitem o exercício adequado das suas responsabilidades em todos os aspetos: da educação à saúde, passando por questões patrimoniais e por todas as questões da vida quotidiana em que o reconhecimento legal da parentalidade é relevante.

A segurança destas crianças (face até a eventuais situações extremas como a eventual morte da única figura com vínculo legal) precisa deste reconhecimento e da garantia do exercício das responsabilidades parentais por ambas as figuras.

Olhar para esta questão pelo prisma dos Direitos das Crianças não deixa mesmo margem para dúvidas, como se comprova pelo apoio expresso à aprovação desta lei por organizações incontornáveis como a UNICEF e o Instituto de Apoio à Criança, que frisam a importância da preservação de vínculos afetivos e emocionais das crianças.

Este é, por isso, um projeto de lei que só acrescenta e nada retira. É um projeto que vem conferir proteção jurídica a uma realidade que já existe – e que é tão necessária para as crianças e famílias que já estão aqui. E é um projeto que vem garantir o mínimo indispensável para honrar os compromissos de Portugal com os Direitos Humanos na Europa e no mundo.

Há uma década atrás, o Parlamento (com uma maioria também constituída pelo PSD e pelo CDS-PP) aprovava por unanimidade a inclusão da orientação sexual no artigo 13.º da Constituição. Por maioria de razão, a questão da coadoção – bem mais pacificada e generalizada na Europa, por ser fundamental para salvaguardar direitos de crianças – deveria merecer esse consenso.

Sim, há outras questões relativas à parentalidade que envolvem discriminações injustificadas com base na orientação sexual; e as diversas audições parlamentares, nomeadamente no campo científico, demonstraram isso mesmo. Mas esta questão é, de facto, diferente das demais, porque neste momento a discriminação, ainda que dirigida a mães ou pais, incide sobre as crianças, que temos a obrigação de proteger em primeiro lugar – e é, também por isso, de uma enorme violência para as famílias.

Estão em jogo muitas crianças concretas que amam e são amadas pelas suas famílias concretas, mães ou pais, avós e avôs, tias e tios, primas e primos – e são muitas crianças que sabem bem quais são as suas famílias. Honremo-las.

Presidente da Direcção da ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero

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