Aldina Duarte: “O meu lado confessional a cantar nasce no estúdio, ao vivo é impossível”
Para celebrar 20 anos de carreira, a fadista Aldina Duarte volta ao palco da Culturgest, em Lisboa, para um espectáculo de desafio e síntese. Chama-se O que nunca direi e ela vai dizê-lo a cantar.
Este seu espectáculo tem um título enigmático: O que nunca direi. Como canta, aos outros, o que nunca dirá?
Esse título fui eu que o dei, depois de ler o texto que o Jorge Silva Melo escreveu para o espectáculo. Será também o título do próximo documentário sobre mim, porque define aquilo que o meu fado tem de mais singular e mais profundo, aquilo que é indizível, ou seja, o que só se pode dizer através da poesia e da música. Pelo pudor próprio do recato desse tipo de sentimento. Porque só é vivido mesmo muito intimamente, porque a palavra falada não é a sua expressão. São aquelas coisas que eu continuo a desafiar-me mais para cantar: segredos, sonhos dores agudas. Porque o meu fado sempre foi mais implosivo do que explosivo e continua a ser. É essa a minha busca de verdade: o que é que anda aqui, que matéria é esta de que somos feitos e nos sustenta? Como é que se pode cantar isso?
Celebra 20 anos de carreira mas lançou o primeiro disco apenas há dez, em 2004…
Eu não conto a minha carreira a partir do meu primeiro disco, porque o meu percurso tem essa particularidade: faz-se paralelamente entre a casa de fados, onde estou há dezoito anos, e o mundo. Não posso perder esse vínculo nunca. Mesmo que eu fosse muito bem-sucedida em concertos, o que é que se faz nos dias em que não há concertos? Ou seja: a minha vida está estruturada em torno desta forma de vida. E é nessa rotina que eu me torno criativa, ao contrário do que senti quando fiz tournées. Não ia ser feliz assim.
É curioso que isso define uma triangulação: casas de fados, discos (de periodicidade regular) e apenas um grande palco, que é o da Culturgest. É isso?
É o meu tripé artístico. Foi o Jorge Silva Melo que me deu confiança e me ensinou o que era preciso para transportar o meu fado para o grande palco sem o perverter no essencial. Depois descubro o que é próprio do palco e isso começa a interagir com a casa de fados. E de repente vou para estúdio e começo a perceber que aquilo é um confessionário, uma circunstância em que eu nunca canto: agora vou cantar para mim. E aí surgiu-me muito do que é inconfessável a falar e que é confessável a cantar. O meu lado confessional a cantar nasce no estúdio, porque ao vivo é impossível, diante de toda aquela gente. E esse é o lado bom do estúdio. Afinal, não é aquela frieza desmesurada, aquele peso.
Como é que estruturou o espectáculo? Como um percurso de carreira?
Não, desta vez não. Eu tenho sempre um guião, na minha cabeça, para tudo. E depois cada um, ouvindo, fará o seu. É a minha forma de não perder o caminho de cada história que estou a cantar. O que é que eu fiz? Pensei nos grandes saltos do meu caminho. E quis cantar esses saltos, em vez de cantar os intervalos entre eles. Isso tem a ver com a casa de fados, com as temáticas que me definem, com as descobertas essenciais para passar à fase seguinte. Tem o primeiro e o segundo disco [
Apenas O Amor, de 2004; e Crua, de 2006] na abertura, mas não no mais evidente. Porque esses dois discos simbolizam o que eu desconheço de mim, enquanto pessoa, enquanto artista. Mais do que inquietação, é um tormento permanente, o prazer é uma coisa que há-de vir, não está na nossa mão. Então eu tentei mostrar essa primeira fase, que é muito apaixonante mas é um grande tormento, o tormento da espera.
E o passo seguinte, por onde nos conduz?
Daí passo, com os meus cúmplices (o José Manuel Neto na guitarra portuguesa e o Carlos Manuel Proença na viola), para os convidados. Eu nunca gostei das histórias muito certas, gosto das histórias que são contadas com o ir e vir do pensamento, porque nunca somos lineares a pensar. Volto então à casa de fados e todos os meus convidados vão ser chamados ao mesmo tempo. Saem o Carlos e o Zé e entram o Rogério [Ferreira, viola] e o Paulo [Parreira, guitarra], com quem trabalho há dez anos, todas as noites, no Sr. Vinho. Como o Carlos e o Zé, eles são uma dupla e quando eu sinto que dois músicos são irmãos gémeos, quase, isso eu adoro. Sinto-me muito mais liberta para cantar. O que é que aparece então nessa zona? A casa de fados mas também o Júlio Resende no piano, que foi uma experiência musical muito rica para mim, que me acrescentou musicalmente. E depois o grande salto: o trabalho com a Olga Roriz. Costumo dizer que com o Jorge Silva Melo encontrei a minha alma e com a Olga encontrei o meu corpo. Porque ela me pôs a cantar os meus fados com instrumentos improváveis, como o cajón ou a harpa. Ora com a harpa percebi o que era, não o meu fado no meu corpo mas o meu corpo no meu fado. E, enquanto personalidade artística mudei, radicalmente.
É um diálogo difícil, o da sua voz com a harpa?
É. Mas tem uma coisa que mais nenhum tem e que eu descobri. Eu acho que tenho uma doçura que nunca conseguirei aparentar, até pela minha estrutura física e pela minha personalidade. Mas há uma doçura no meu canto, uma fragilidade, uma ternura, bastante indizíveis, que colam completamente com a harpa. É muito encantatória. Então eu escolhi, para cantar com harpa [a cargo da harpista Ana Isabel Dias] os temas que têm a ver com a fragilidade: o
Barro divino e o Branca, branca, da Blanche de Um Eléctrico Chamado Desejo, porque se há fragilidade em alguém é naquela personagem, que eu adoro contar. Com o Júlio ao piano vou cantar um tema que tem a ver com a rejeição, porque com o piano é impossível ser discreto e a rejeição é impossível esconder-se. E depois canto o meu hino, que é a Eurídice. Pelo meio, cantarei com o Paulo e o Rogério vários temas e vou estrear um inédito, o meu auto-retrato fadista escrito pelo João Ferreira-Rosa, no dia em que me ouviu cantar numa gala em que estivemos juntos.
Qual é a história por detrás desse tema?
Foi na gala do Carlos Zel. Já não nos víamos há dez anos. Eu tenho uma história com ele muito comovente. O João Ferreira-Rosa é um dos fadistas que eu sempre admirei mas quando ele me ouviu cantar pela primeira vez no Sr. Vinho ele não sabia quem eu era mas fez questão de ir, à frente de toda a gente, no fim, dizer uma frase [à Maria da Fé, fadista e proprietária de estabelecimento] que eu pela primeira vez tive de fugir da frente do público para não chorar ali: “Maria da Fé, ela é uma das nossas.” Dez anos depois, ele escreveu essa letra para mim durante a gala do Carlos Zel. Ditou-ma ao telefone no dia seguinte: ‘Oiça lá isto’. E começa a dizer-me a letra… Brutal. Pus-lhe uma música do Marceneiro e vai chamar-se
Auto-retrato. Ou O que nunca direi.
Os músicos vão estar sempre todos no palco, em simultâneo?
Vão. Eu faço ali um dos meus alinhamentos diários da casa de fados, mas isto tem uma ligação em que o pianista está sempre a ver a harpista e vice-versa, estão todos lá até ao último momento. E depois voltam o Carlos e o Zé e aí entramos outra vez no repertório dos discos
Mulheres ao Espelho [2008] e Contos de Fados [2011], para acabar.
Está já a preparar um novo disco, verdade?
É verdade. Já está todo escrito e já estou a ensaiá-lo também. É todo escrito pela Maria do Rosário Pedreira, com um conceito extraordinário. A ideia é dela mas trabalhámo-la juntas. É uma espécie de cantata, com princípio, meio e fim. Conta a história de um triângulo amoroso, um homem e duas mulheres, tem uma personagem que é uma vizinha e é toda cantada em fados tradicionais. Por baixo do título de cada fado tem um subtítulo que corresponde à fase da história: o encontro, o namoro… E o concerto que daí sair serão só aqueles catorze temas. E em lugar de fazer uma sala grande quase de certeza que farei temporadas em salas pequenas. Uma semana, por exemplo e é assim que eu o vou rodar. Primeiro vou cantar três personagens e está a ser muito difícil cantar assim. Tenho um tema em que sou a protagonista, a mulher que vai ser traída, numa quadra, e noutra vou ser a vizinha que vai traí-la. Ou seja: eu tenho que saber contar muito bem a história, melhor do que nunca, porque aquilo exige uma concentração superior à que aprendi. É uma história toda ao contrário, porque começa com uma alegria e acaba num horror, a traição, a separação. O fim não vou contar, mas é improvável. Chama-se
Romance.