“Olha esta sereia louca na Feira dos Tecidos! Agora reparo nas sereias todas”, diz-nos Ana Matos, encantada com uma fatiota de Carnaval pejada de lantejoulas azuis à venda numa loja da Rua de Cedofeita, no Porto. Aqui, Ana, aliás Capicua, não é peixe fora de água. “Tenho uma relação afectiva com esta zona da cidade porque quando nasci vim morar para aqui.”
A sereia, criatura mitológica que funde mulher e peixe, inspirou o novo álbum de Capicua, o sucessor da estreia homónima de 2012. O título Sereia Louca surgiu na cabeça de Ana num sonho. Nessa noite, “para aí há dois anos”, Ana sonhou que tinha aberto a Sapataria Sereia Louca na Rua de Cedofeita. “Lembro-me de ter sido um daqueles sonhos muito realistas que que acordas de manhã e parecem de verdade. E o primeiro impulso foi tentar desenhar os sapatos, lembro-me de achá-los bonitos — sou daquelas pessoas que gostam de sapatos”, conta. No sonho, cada par de sapatos vinha acompanhado por um chocolate.
Contou o sonho “a toda a gente” e tornou-se especialista em sereias, da Pequena Sereia de Hans Christian Andersen às que encontrou nos mares da Odisseia de Homero — e descobriu que Mário de Sá-Carneiro tinha posto a expressão “sereia louca” no poema Estátua falsa. “Toda a gente achava: ‘Isso é boa ideia, sapatos e chocolate são coisas de que todas as mulheres gostam. Ia dar um belo negócio’.” Mas o que mais a intrigou foi o absurdo de uma sereia calçada. Dias depois teve o “momento de iluminação”: “Só uma sereia louca vai querer sapatos.”
Gostou da ideia: uma sereia fora do seu habitat natural. “Escrever e criar músicas para mim é um bocado isso. É viver emoções que às vezes não são minhas e explorá-las. Calçar os sapatos das outras pessoas e experimentar essas vidas.” Foi mais longe: percebeu que “sereia louca” podia desdobrar-se em “serei a louca”. “Tinha tudo para fazer uma música.” E fez: é Sereia louca, o primeiro single. Gostou tanto que deu esse título ao álbum.
Não será por acaso que a Rua de Cedofeita apareceu no sonho de Ana. Nasceu ali perto há 31 anos, na Ordem da Lapa. Passou os primeiros tempos de vida na Rua dos Bragas, então casa da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, onde o pai dava aulas. Depois, mudou-se para Leça da Palmeira (sítio “muito pacato, dava para andar de bicicleta, ir para a praia a pé”), mas quis estudar onde se sentia bem: no centro do Porto.
Foi na Rua de Cedofeita e à volta dela que, na adolescência, se aproximou do hip-hop (depois de ter tomado a sua “primeira decisão musical”: gostar de reggae quando toda a gente gostava de grunge e música triste). As primeiras festas e os primeiros concertos aconteceram no Comix Bar, “todo pintado com banda desenhada nas paredes”. Estava a década de 1990 a meio, estavam os Mind da Gap, os Dealema (a quem agradece em Capicua, “pelo exemplo”), os MatoZoo e outros grupos a inventar o hip-hop do Porto.
No Comix, havia hip-hop às quintas-feiras, mas, rapidamente, os sábados passaram também a ter noites de rimas e batidas. “Passou a haver cada vez mais gente” naquelas festas, conta. “Tinha 15 anos. E lembro-me de me sentir bem ali e de me identificar com aquelas pessoas. Comecei a ir cada vez mais vezes.”
Ana olha para esta rua e ainda vê a artéria “muito portuense” com que cresceu, com casas “muito típicas”, cheia de comércio tradicional, das sapatarias às lojas de botões. Mas já foi uma “rua muito mais animada”, com “muito mais gente”. O tempo fez das suas.
Porto escondido
Ana mete-nos no carro. Percorremos a Baixa do Porto, quase deserta — é domingo. Passamos pela Avenida dos Aliados, subimos até à Sé, rumamos à Ponte Infante D. Henrique. Casas abandonadas persistem em pontuar uma paisagem em suave mutação, graças aos euros do turismo.
Na adolescência entrava em sítios abandonados para fazer graffiti. Assinava como “Odd” (estranho, ímpar). “Uma coisa que o hip-hop me deu na minha adolescência foi uma ligação à cidade que eu não teria sem ele”, reflecte. “Observamos a cidade com uma layer [camada] em que as pessoas não reparam. Estamos a reparar naquela casa emparedada ali, estamos a olhar para aquele prédio.”
Os milhares de letras de hip-hop sobre cidades não são conversa fiada, garante. Sente que se apropriou da cidade, que fez dela — mesmo dos cantos mais esconsos — uma zona de conforto. “Bué putos juntos, de noite, numa cidade, a observarem as suas rotinas: cada vez que passa o camião do lixo, onde há uma torneira para beber água, qual é a padaria que nos deixa comprar pão a meio da noite.”
Gosta “desta coisa de o hip-hop ser muito territorial, muito identitário”: “Tu representas o bairro, tu representas a cidade. A escola do rap do Porto sempre se alimentou do nosso calão, da nossa identidade local, como referências musicais e, até certo ponto, morais, linguísticas.” Capicua criou “relações afectivas” com “fábricas abandonadas, nós de auto-estradas”, uma estação de recolha de autocarros abandonada que era um “museu de graffiti”.
Ana pára o automóvel. Chegamos a um desses locais. Em cima das nossas cabeças, um gigante de betão: a Ponte Infante D. Henrique. A maravilha da engenharia é vizinha da pobreza. Estamos no lavadouro público da escarpa das Fontainhas. Pedras agarram os telhados de chapa do bairro que ali existe. Lixo e roupa seguram-se à vegetação selvagem. Num canto do lavadouro, fezes; lá em baixo, a água castanha do Douro. Uma mulher lava roupa. Avisa a amiga: “Tens de tirar a roupa. Vai dar chuva da grossa.”
Quem passa de carro na ponte não vê isto. “Há vários Portos dentro do Porto”, confirma Ana. Até na Baixa e na Ribeira, cheias de turistas, é assim: “Se calhar, no rés-do-chão há uma multinacional e no último andar há uma velhinha que não desce as escadas porque já não consegue subi-las.”
Aqui, neste lavadouro, a vista deslumbra, mas a decadência está por perto. “O Porto tem essa coisa de ser uma cidade muito bonita, mas, ao mesmo tempo, ter sempre um travo a sombra e decadência”, reflecte. “Marca muito a identidade da cidade ter os seus cantinhos decadentes e outros mais monumentais — mas mesmos os monumentais têm sempre um bocadinho de sombrio, de cinzento, de tristonho. Faz parte do charme do Porto.”
No espectáculo Lavadouro, estreado em Outubro de 2012, com os músicos Pedro Geraldes (Linda Martini) e Ghuna X e o fotógrafo Miguel Refresco, Ana leu textos de escritores que falam do Porto enquanto “cidade aquática” — rio, mar, nevoeiro, chuva, humidade.
Ficou surpreendida com a rede de lavadouros públicos do Porto, “expressiva”, mas “bastante escondida”. “Encontrei espaços como este, insólito e pitoresco, debaixo de uma ponte, com vista para quase todas as pontes do Porto.”
Ciúmes
Ana é mulher de cidades, mesmo que sonhe viver “num sítio mais pequeno, uma aldeia”. “Quero uma casa no campo como Elis Regina/ Plantar os discos e os livros/ E quem sabe uma menina”, canta em Casa no campo, que surge em Sereia Louca numa versão acústica (o segundo CD do novo álbum, Cauda, é dedicado a rever temas do passado, uma forma de registar para a posterioridade a “segunda vida” que algumas canções ganharam em palco).
Não viveu sempre no Porto. Licenciou-se em Sociologia em Lisboa, e doutorou-se em Geografia Humana em Barcelona. Capicua, o primeiro álbum em nome próprio, surgiu durante o doutoramento. “Foi uma tábua de salvação. Precisava de algo que fizesse o coração bater mais rápido.”
Gosta das três cidades. Mas em Lisboa constatou que não é fácil estar com os amigos — a cidade é grande, os subúrbios estão longe. E Barcelona “parece um campo de férias, a Disneylândia”, uma cidade em permanente efervescência, esgotante. O Porto ficou sempre no coração. “Tem uma dimensão doméstica”, argumenta. “É uma cidade ciumenta e que nos prende muito. Faz-nos sentir em casa.”
A dimensão do Porto também “faz com que as pessoas se apeguem”. Quem cria projectos sente “que a cidade também se faz” pelo que cada um dá a ela. “Depois de viver tantos anos em Lisboa e de vir ao Porto ao fim-de-semana, uma das coisas que me dá um prazer especial é passar um domingo à noite no Porto”. Uma pizza, um domingo à noite em casa: o paraíso para Capicua.
Das Fontainhas seguimos para Campanhã. Na Rua do Heroísmo, juntam-se crentes à entrada da mesquita. Chegados à estação ferroviária, um arrumador grita “Jovem!” e indica-nos um lugar disponível. Viagens Lisboa-Porto são normais na vida dela, como são nas de muita gente, obrigada a rumar à capital para encontrar oportunidades. “Ao domingo ao final da tarde é impossível comprar um bilhete”, diz. Caminhamos pelo caminho subterrâneo e subimos à linha 8. “Vim inconscientemente para a linha do Intercidades. Já nem questiono.”
Mulheres e “brinc dance”
Ana conhece bem esta estação, mas em Sereia Louca prefere falar sobre os barcos que ligam as margens do Tejo. A canção A mulher do cacilheiro surgiu de um convite do sociólogo Boaventura de Sousa Santos para um espectáculo em torno do pós-colonialismo, que acontecerá em Junho, em Coimbra. É um exemplo da escrita de Capicua, atenta aos pormenores da vida quotidiana, e capaz de elevá-los poeticamente. Quis tentar uma escrita mais “lírica” desde que começou a “rappar”, no início da década de 2000. Aliou-se a Marta (ou M7), que a acompanha desde então. Mas nessa altura fazia textos enormes que não cabiam no tempo. Aprendeu, falhando, que o rap exige “impacto” e que se jogue com a “atenção” do ouvinte.
Durante o Erasmus, em Barcelona, conheceu portugueses que por lá faziam hip-hop. A vontade de fazer hip-hop voltou. Quando regressou a Portugal, montou, com Marta e o produtor D-One (que também se tornou camarada de ofício desde então), os Syzygy — “o pior nome de sempre, ninguém acertava”. Lançaram um EP em 2006.
Foi na escola das mixtapes (objectos mais informais do que um álbum) que trabalhou o “impacto, a atitude mais competitiva”, a punchline, o efeito cómico. “É isso que faz um rapper ser um rapper”, defende. Depois de frequentar a escola do rap mais directo, pôde voltar à escrita mais lírica e “autobiográfica”, mas já munida de um novo savoir-faire.
“É difícil fazer música sem punchline, mantendo o impacto linha a linha”, reconhece. É difícil, mas possível e recompensador. “Funciona como uma espécie de terapia em que vamos digerindo as coisas más, que nos preocupam. É uma forma de transformar a merda em ouro. E também acho que nos aproxima das pessoas: falar para as pessoas sem filtro, expondo as nossas fraquezas, torna-nos mais próximos de todos. Isso acaba por ter um impacto — cá está outra vez a história do impacto.”
Gravou o álbum de estreia em nome próprio na casa de Ghuna X, que também é produtor, com vista para o Silo Auto, parque de estacionamento metido num grande edifício brutalista com ar inacabado. Desta vez, rumou ao estúdio da Meifumado, em Famalicão. Ali voltou aos temas que lhe vão na cabeça. Há sereias e há mulheres inteiras — a do cacilheiro (“Entre toda aquela gente, ela é só mais uma preta/ Só mais uma imigrante, empregada da limpeza/ Só mais uma que de longe vê a imponência imperial/ Do tal Terreiro do Paço da Lisboa capital”); a mulher “cristalina”, “forte”, que faz “mover os moinhos”, de Líquida; a “menina dos olhos tristes” de Reinaldo Ferreira cantada pela fadista Gisela João em Soldadinho; a “guerreira, “tripeira” e “ferrenha” de Mão pesada; a que não vai “cumprir com a puta da expectativa” de Alfazema. Mulheres fortes, que encaixam no “mito da mulher do Norte”, “rabugenta”, “frontal”, explica-nos.
A vida no feminino é um dos temas de Sereia Louca, o envelhecimento é outro. Em Vayorken (“Nova Iorque” na linguagem de Ana Matos enquanto criança) ouvimo-la a lembrar de onde vêm o “brinc dance” (o breakdance, entenda-se), o graffiti, o hip-hop e Jane Fonda — “de Vayorken”, claro.
Ana, “mulher balzaquiana”, pergunta em Síndroma de Peter Pan: “Quem é que quer crescer? Quem é que quer usar gravata, pôr a farda, envelhecer?”. Ela explica-nos: “Lidar com a passagem do tempo tem-me angustiado. Este disco foi escrito um pouco para espiar os fantasmas de ter feito 30 anos e não ter gostado. Não esperava que custasse tanto. É sentir aquela angústia: o tempo passa demasiado rápido para a quantidade de coisas que tenho para fazer.”