Crítica de ópera: uma casa de sons ocupada
Nesta pequena mas intensa ópera, The House Taken Over, a música de Vasco Mendonça insinua, sugere, abre portas imprevistas naquela casa fechada.
Dois irmãos - ele e ela - numa casa antiga, que guarda as lembranças dos seus pais e avós. Ela tricota, ele lê. Ambos têm a mania das limpezas. Cumprem simplesmente as tarefas domésticas. A casa fechou-os naquele mundo, eles fecharam-se na casa. A ópera The House Taken Over é baseada no conto Casa Tomada do escritor argentino Julio Cortázar, publicado em 1946.
No conto é o irmão que narra, mas para a ópera a escritora Sam Holcroft "teatralizou" o conto e criou um libreto onde há discurso directo de ambos os irmãos. No conto, o inquietante surge do mais banal e familiar, de uma escrita simples, dura, directa. Na ópera, a inquietação vem, em grande medida, da música de Vasco Mendonça, compositor que tem colocado o teatro musical no centro dos seus interesses, com excelentes resultados (lembremos por exemplo a muito estimulante ópera Jerusalém, de 2009).
Uma escrita musical extremamente interessante na sua combinação da expressão mais íntima e directa (o "zás!" de que gostava o Schönberg "expressionista") e de, ao mesmo tempo, exprimir coisas ao lado - dizer o que a palavra não diz. Neste sentido, o teatro é para Vasco Mendonça um caminho natural. Nesta pequena mas intensa ópera,
The House Taken Over, a música insinua, sugere, abre portas imprevistas naquela casa fechada. E se a encenação recupera a inquietante estranheza dos gestos banais num tom quase naturalista (o conforto familiar torna-se terror), a música alarga a leitura da obra e faz crescer vertiginosamente o medo através de uma composição que tece engenhosamente alusões de memória e de medo, mergulhando no inconsciente e fazendo-nos ouvir os fantasmas nos timbres de um conjunto de 13 instrumentistas - o excelente grupo Asko
Schönberg.
A ópera começa com esse som da casa (de onde virá?) que está lá desde o início, e sem explicação - uma casa que "eles" assombram constantemente (mas "eles" quem?). Os sons que se ouvem assustam os irmãos, mas também despertam constantemente os ouvidos do público que quase enchia o teatro Maria Matos. A casa e a família tornam-se o espaço confinado - cada vez mais confinado ("então temos de viver deste lado", diz a irmã quando ele fecha apavorado a porta) - de uma ordem que não é questionada, até ao fim. "Temos todo o tempo, mas não temos tempo para isso", diz o irmão a certa altura.
A música deixa-se guiar pelas personagens mas também as guia, levando-as numa espiral de clausura e medo. Se o libreto comete alguns erros quando explica demasiado as coisas (o conto deixa-as muito mais em aberto, nunca fala em "loucura", a não ser da loucura de viver numa casa tão grande para apenas duas pessoas), a música capta bem a obsessão e deixa ouvir, nos interstícios, sinais musicais de uma memória que não é libertadora, mas terrível.
Uma importante canção de embalar assola a casa e a ópera. O conforto passa a ser assustador ("we're safe", repetem eles, mas a música não descansa). Porque os dois irmãos de meia-idade são incapazes de sair verdadeiramente da infância. Da família restam livros, selos, bonecas antigas, o tricô e os gestos da ordem e da limpeza tornados doentios. "Are you afraid?" ("Tens medo?"), perguntam os irmãos um ao outro num pequeno mas belíssimo momento de composição vocal de Vasco Mendonça. E dizem "não", embora estejam apavorados e compulsivamente aprisionados nas suas próprias mentes.
Temas do teatro (e da psicanálise) de há mais de cem anos: as disfunções da família burguesa, a memória doentia do passado, a casa fechada. A música não deixa de lembrar o expressionismo atonal do início do século XX (Schönberg à espreita). E apesar disso aqui está uma obra nova, estranhamente actual, com a potência expressiva e inquietante da música de Vasco Mendonça.