A inteligência de uma encenadora
The House Taken Over marca a estreia, em Portugal, da encenadora britânica Katie Mitchell. É uma ópera de câmara, mas é mais do que isso. É um exemplo de perfeição que nos entusiasma tanto que mete medo.
Esta forma de olhar para o teatro como a “possibilidade de reconstrução da vida, sustentando um discurso nos comportamentos das pessoas mais do que nas palavras das personagens”, como haveria de explicar, no ano seguinte, em Avignon atesta a singularidade de uma encenadora cujo trabalho, se tivéssemos que o definir, se situa, paradoxal e formalmente, na confluência entre diferentes disciplinas mas, em bom rigor, se define precisamente através da libertação de códigos formais estéticos.
The House Taken Over, que a Fundação Calouste Gulbenkian e o teatro Maria Matos apresentam em conjunto, integrado no ciclo Música/Teatro, acerta o passo da programação nacional com um dos mais extraordinários discursos da contemporaneidade. Ainda que seja uma ópera de câmara que não se socorre do aparato técnico e cénico que têm caracterizado as últimas produções da encenadora, exemplifica a singularidade de um olhar que se surge como como hipótese de transformação da imagem em algo material, vivo e, por isso mesmo, efémero.
A partir do conto La Casa Tomada, de Julio Cortazar (que em 2014 “celebra” 100 anos de nascimento e 30 de morte), Mitchell transforma a claustrofobia da nunca assumida ditadura sul-americana na casa dos dois irmãos. O modo como vai manipulando o próprio cenário, sujeitando os actores à surpresa da sua própria reacção e induzindo nos espectadores um pânico que nunca se esclarece, dá bem conta de como para Mitchell o teatro não existe apenas naquilo que é visível. Nesse sentido, o diálogo que constrói com a partitura do português Vasco Mendonça adensa o mistério e transforma o espaço da casa num lugar de temor, até para o próprio espectador. Escrevemos em 2011, quando vimos, em Avignon, Reise durch die Nacht, que a encenadora inglesa adaptou do romance de Friederike Mayröcker, Viagem através da Noite, e não acrescentaríamos nem mais uma vírgula: o teatro de Mitchell, na sua confluência disciplinar, é um sinal claro de como é possível construir um discurso alicerçado na problematização da representação, ou seja, do que é visível. Como dar a ver, hoje.
Quando o PÚBLICO viu The House Taken Over, meses depois da estreia em Aix-en-Provence, em Antuérpia, cumprindo um circuito de apresentação pelos teatros parceiros da rede ENOA (da qual a Fundação Gulbenkian, co-produtora, faz parte), a sala do DeSingel suspendeu a respiração após os últimos acordes, agudos, ásperos, por força de uma encenação que parecia abandonar as personagens à sorte de um destino que era tudo menos previsível. O que seriam aqueles barulhos? Quem seriam aqueles de quem os irmãos falavam? O que teriam acontecido aos familiares daqueles irmãos? Porque é que um deles parecia saber sempre mais do que o outro?
"Há algum prazer em se conseguir adivinhar o que se vai passar a seguir?", dizia Katie Mitchell a propósito do seu trabalho em 2012 e The House Taken Over leva essa ideia à letra com uma segurança e uma secura que parecem quase falsas. O trabalho de Mitchell foi sempre assim, rompendo com uma expectativa e manipulando a própria narrativa. O seu processo de trabalho parte de "uma análise psicológica, quando não mesmo psiquiátrica, das personagens", explicaria nessa conversa com o PÚBLICO. "Houve no meu trabalho uma radicalização do processo de criação e, naturalmente, um desvio na escolha de textos, passando dos textos puramente dramáticos para os romances, que me permitem abordar outros universos."
The House Taken Over aproxima-se, na sua aparente simplicidade, de uma outra encenação, esta só de texto, Dores de Crescimento, de Bruckner, que a encenadora estreou no National Theatre, em 2009, onde é artista associada. Um dispositivo semelhante, o mesmo terror insinuado a partir de uma relação fraternal que é uma metáfora social e política. Ambientado na Primeira Guerra Mundial era, para Mitchell, o pano de fundo ideal para explorar um outro modo de organizar narrativas, que havia, aliás sido expresso na adaptação que fizeram, em 2008, de As Ondas, a partir de Virgia Woolf.”Provavelmente aborreci-me com o teatro normal e o modo como se organizam narrativas”, contava em entrevista na altura. E depois, mais tarde, ao PÚBLICO: "Quando viajei pela Europa de Leste, descobri um conjunto de encenadores e realizadores russos, e isso alimentou a minha ideia, já antiga, de que não queria ficar encerrada numa forma de teatro museológico, que consiste em reproduzir formas já estabelecidas". A adaptação de um conto como La Casa Tomada inscreve-se nessa vontade de alargar, para a efemeridade do dispositivo teatral, a experiência solitária que é o questionamento sobre o que vemos (ou lemos, ou ouvimos).
Em 2008, o jornal The Independent escreveu que Katie Mitchell era o que de mais aproximado a Inglaterra tinha de um auteur. Em 2014 vamos, finalmente, perceber porquê.