Vasco Mendonça: um compositor feito de curiosidade e inquietação
A ópera de câmara The House Taken Over, com encenação de Katie Mitchell, tem estreia portuguesa esta sexta e sábado no Teatro Maria Matos, em Lisboa
Inscrita pela revista Télérama numa genealogia onde se inclui a inacabada A Queda da Casa de Usher, de Debussy, sobre o conto de Edgar Allan Poe, e descrita pelo jornal belga Le Soir como “uma pequena jóia de concentração e precisão”, a ópera confirma Vasco Mendonça como um dos nomes portugueses mais destacados da música contemporânea. O percurso do compositor nascido em 1977 ilustra-o bem. Estudou com Klaas de Vries ou George Benjamin, foi o vencedor do Concurso Fernando Lopes-Graça em 2004, foi depois compositor residente na Casa da Música e foi ele que a Gulbenkian convidou para celebrar com uma nova obra (Group Together, Avoid Speech) os 50 anos da sua Orquestra. As suas obras têm sido interpretadas Europa fora por grupos como o prestigiado Asko/Schoenberg Ensemble (iremos ouvi-la em The House Taken Over), o Niuew Ensemble, a Orquestra do Porto, o Remix Ensemble, a Orquestra Gulbenkian ou a Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Estamos, portanto, com Vasco Mendonça no seu escritório. Numa sala próxima, faláramos do seu fascínio pela voz e de como ela será a base do seu trabalho futuro. Abordáramos uma carreira de início tardio e no universo do jazz. Ouvíramo-lo falar do apreço pela “economia certeira” da língua, literatura e poesia britânicas (The House Taken Over é uma ópera em inglês).
Terminada a entrevista, estamos debruçados sobre uma caixa com rochas de vários tipos. Raspa uma de xisto e elogia-lhe o som. Conta depois que, não há muito tempo, comprara duas dezenas de copos de vidro e dedicara-se a parti-los para lhes analisar e registar o som. Na parede, está afixado um excerto de Molloy, de Samuel Beckett, em que o escritor e dramaturgo irlandês disserta sobre como chupar pedras.
Neste momento, a ópera que passou este mês pelo Luxemburgo e pela Bélgica, concorre em Vasco Mendonça com a dedicação ao passo seguinte. Uma peça para o Drumming - Grupo de Percussão. “Estou a experimentar coisas que nunca tinha feito, como trabalhar a matéria dos instrumentos, no sentido de usar aquilo de que são feitos como elemento composicional”: percutir a madeira da guitarra portuguesa guardada num canto do escritório, por exemplo. “Isto está a léguas de distância do contexto mais tradicional da ópera, mas é um trabalho que me entusiasma muitíssimo”.
Poderíamos daqui inferir que Vasco Mendonça é compositor entre dois mundos, o da tradição e o da vanguarda, o do fervor experimentalista e o da depuração de formas conhecidas. Poderíamos, mas seria uma leitura simplória, redutora. “O contraste tradição versus experimentalismo é para mim uma falsa questão”, dirá mais que uma vez ao longo da entrevista. “A subversão pode vir de qualquer desses campos”, acrescenta. É uma afirmação que entronca numa marca geracional. Na sua geração, aponta, “há seguramente um olhar com menos preconceitos, não há territórios proibidos”: “Se reconhece em alguma coisa matéria de interesse, seja o repertório de Bel Canto, seja o drum’n’bass, não há razão para não explorar esse território”. Este traço geracional é um contexto. Para além dele, um compositor. Um outro mundo.
Vasco Mendonça começou a estudar música aos 13 anos, “relativamente tarde para um concertista ou intérprete”. Entrou na música pelo jazz e construiu uma história com o Hot Club, em Lisboa, onde foi aluno e professor. Era guitarrista e chegou a ter uma banda “com músicos que são agora conhecidos da nossa praça, como o [baixista e contrabaixista] Miguel Amado”. Na Academia de Amadores de Música de Lisboa, juntou o estudo do piano ao de guitarra. Algo, porém, parecia faltar-lhe. “Não sentia aquela obsessão, aquela abnegação” na relação com o instrumento. A sua obsessão estava noutro lado. Avancemos até ao presente.
Vasco Mendonça compôs The House Taken Over ao longo de seis meses. Meio ano em que trabalhou “doze horas por dia, todos os dias” – “tenho um filho pequeno que nem me viu durante esse período”. É na concepção, na escrita e na criação que se sente preenchido. Trabalho que precede, de resto, a entrada no universo da música contemporânea. Esse chegou quando ingressou na Escola Superior de Música. “Era surpreendido de forma regular por coisas que não percebia”. Guiava-o uma curiosidade inata, uma vontade de descobrir mais, de compreender. Era arrebatado, diz, pelo “espanto que se tem perante o precipício, no sentido do sublime kantiano”. O momento da descoberta de Messiaen e Stravinski fê-lo saltar. Vasco lançava-se. “A partir daí fui criando a minha própria genealogia de compositor, um processo sem fim e em constante evolução”.
Mais tarde, encontrávamo-lo na Holanda. Concluiria o mestrado em Composição no Conservatorium Van Amsterdam, com Klaas de Vries como orientador. “Tive a noção clara que precisava de ir para um sítio onde pudesse experimentar, experimentar e experimentar. Precisava de fazer música e ouvi-la, precisava de falhar, de acertar e de, com isso, construir a minha própria voz”. Em 2004, explicava de forma sucinta ao jornal Independente porque lhe foi indispensável sair: “Em Portugal tive duas peças tocadas em quatro anos, enquanto na Holanda houve trinta execuções em dois anos”. Ao regresso a Portugal, seguiu-se nova partida, desta vez para Londres. Não pelo que Londres tinha para oferecer, mas por um compositor, George Benjamin.
Vasco trabalhava na sua primeira ópera de câmara, Jerusalém, baseada no livro de Gonçalo M. Tavares e encenada por Luís Miguel Cintra, estreada em 2009. Benjamin, por sua vez, preparava Written on Skin, a ópera que se estrearia em 2012 no Festival d’Aix-en-Provence. Com Klaas de Vries, aprendeu a pensar a música e os objectivos a que, com ela, se propõe. Com George Benjamin, “uma espécie de artesão genial”, recentrou a sua atenção na música “enquanto objecto sonoro e manufactura”.
Ei-lo então a dois dias da estreia portuguesa de The House Taken Over, obra onde se concentram dois dos seus grandes focos de interesse e curiosidade enquanto criador. Por um lado, a voz. “É o instrumento mais extraordinário que há. Pela capacidade de transportar texto, mas não só. Aquele risco e aquela fragilidade e, ao mesmo tempo, aquela expressividade, representam para mim qualquer coisa de muito importante. Creio que nos próximos anos vou estar ocupado com a voz”. Além dela, surge espelhado neste conto em que dois irmãos se sobressaltam numa casa ocupada não sabemos por quem, um interesse dramático recorrente. “Interessa-me muito o comportamento humano. O que leva determinadas pessoas a terem comportamentos não habituais? O que está por trás disso?”.
Nele, diríamos que a palavra-chave é curiosidade. Questionar mais, descobrir mais, chegar a mais. Quer na leitura do recorrente Samuel Beckett, que já foi rastilho criativo para vários trabalhos (“há qualquer coisa nele que me comove profundamente”), quer na exploração da voz, no trabalho multimédia quando ele se impõe como necessário (aconteceu em Ping, colaboração em 2011 com o cineasta Sandro Aguilar), na exploração da plasticidade natural do som (como faz agora no trabalho para o Drumming) ou no desejado trabalho futuro em óperas de dimensão sinfónica – “espero que aconteçam no futuro, eu certamente tenho vontade de o fazer”.
Vasco Mendonça, então. Compositor nascido em Portugal, não necessariamente compositor português. “A dimensão da portugalidade não me interessa, vejo-me como compositor, não como compositor português – isso corre o risco de se tornar uma coisa superficial quando tudo está globalizado e temos contacto com o trabalho de pessoas de todo o mundo”. Criador que olha com “tristeza profunda” para o estado do meio cultural português em 2014. “Esta colagem da economia à cultura, que passa pelo jargão das indústrias criativas, é um discurso perigoso”, aponta. “Claro que há um benefício económico das actividades culturais, mas é preciso assumir que uma parte do que se faz em cultura não pode ter como objectivo dar lucro”.
Isso é o país lá fora. Aqui dentro, no escritório que é oficina de criação, Vasco Mendonça prosseguirá. “Só quero continuar a fazer o que faço. Sempre com a vontade de fazer diferente do que já fiz, aventurando-me em territórios desconhecidos”. A dimensão de risco é-lhe muito importante. Quer aventurar-se noutras áreas artísticas, procurar novas combinações. Evitar o acomodamento: “O que define todos os artistas que admiro, músicos ou não, é essa dimensão de inquietude”, diz.
Pois bem, que a inquietação continue a guiar Vasco Mendonça como até aqui.