Como dinamitar um piano

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Há uma história que Rodrigo Pinheiro desembolsa do compêndio de mitos do jazz para ilustrar a sua atracção pelo abismo da improvisação: algures nos anos 60, alguém terá gastado umas boas horas a transcrever solos improvisados de John Coltrane e passado as pautas ao saxofonista. Coltrane, perante a fixação das notas no papel, não foi capaz de ressuscitar aqueles solos. A improvisação, precisamente, é um diálogo com o desconhecido, é aceitar que o caminho que se tem pela frente está mal iluminado, não dispõe de indicações e pode levar ao embate violento contra um muro camuflado. Quando corre bem, aliás, o muro torna-se visível, mas consegue-se passear sobre ele ou vê-lo a afastar-se. Os limites existem e a improvisação serve para os empurrar para mais longe. “Às vezes expandem-se de formas tão violentas e inesperadas que fazem dos concertos experiências muito intensas”, resume o pianista. E é nessas noites que Rodrigo Pinheiro sente que não traiu a sua função.

Esta abordagem quase intolerável de busca sistemática por novos caminhos, numa obsessão febril em fugir à própria sombra, pode tornar-se sufocante ao exigir um processo violento contra aquilo que é natural ao músico. Tome-se por exemplo o RED Trio, formação que Pinheiro inaugurou em 2007 com o contrabaixista Hernâni Faustino e o baterista Gabriel Ferrandini, cuja trajectória ascendente colocou o colectivo entre os mais aclamados da música improvisada europeia – Rebento coleccionou menções nas listas de melhores de 2013. A ideia de os três criarem um grupo tomava por imperativo a pesquisa de uma linguagem mais sólida do que é costume neste universo da improvisação. “Era demasiado ad hoc”, concordaram Rodrigo e Hernâni no jantar que precedeu a actuação dos dois integrados num octeto de Ernesto Rodrigues no Hot Clube. “Havia um concerto e tocava-se com uns músicos, no dia a seguir outro concerto e outros músicos. A sensação que dava era a de que não era possível construir alguma coisa”.

De repente, na via comum destes três músicos, e graças a anos de sério investimento no trio, percebia-se um progresso, os ganhos evidentes de não ter de começar sempre do zero, de uma improvisação muito para lá do facilitismo onanista e autocentrado. “Ensaiávamos, gravávamos os ensaios para criticarmos e discutirmos a música que fazíamos, sugeríamos discos uns aos outros, aprendíamos muito”, relata o pianista. Depois desses três ou quatro anos iniciais de um investimento concentrado que mais parecia coisa do rock, o trio começou a querer escolher uns pauzinhos para atirar para a engrenagem – “perturbações”, chama-lhes Pinheiro – na forma de colaborações com músicos exteriores como John Butcher e Nate Wooley. E foi na curta digressão portuguesa com Butcher que aprenderam algo fundamental: a linguagem construída em colectivo só faria sentido se a presciência a três servisse não para reforçar os caminhos que eram capazes de antecipar naquela dinâmica de grupo, mas para boicotar, exigir respostas novas, usar a cumplicidade para dinamitar as pontes óbvias e mais seguras.

Fora do trio

Rebento, o quarto álbum do trio, valia-se dessa lição e alimentava-se igualmente do medo de, depois de partilharem discos com Butcher e Wooley, poderem estar demasiado dependentes de tais perturbações causadas por elementos estranhos, de não serem capazes de gerar os seus próprios obstáculos. “Neste disco há esse papel activo, de contrariar essa resposta do grupo ao que é familiar”, revela o músico. “Já tocámos juntos muitas vezes e acabamos por conhecer muito bem o discurso, as ideias e maneira como os outros reagem àquilo que colocamos. Mas podemos tentar contrariar essa resposta”. Daí que a gravação tenha sido “um bocado dura”. Tinham de ir preparados para quebrar rotinas e entrar em confronto directo.

Agora, depois de um período de actividade frenética com o RED Trio – este ano sairá um quinto álbum, com o vibrafonista Matthias Stahl na cadeira do convidado –, o grupo planeia abrandar. E abre-se espaço para a dispersão por outras experiências, mantendo, no caso do pianista, a mesma lógica de oposição – nem que seja a si próprio. A solo, admite, torna-se mais sensível o confronto com as limitações e com a dúvida de ter “a técnica ou os recursos teóricos para conseguir deitar a música para fora”. A falta de amparo acentua eventuais picos de frustração e torna os limites mais palpáveis ao lidar com as ideias, a resposta a essas ideias, a execução das mesmas e a tomada de decisão relativa a que pontas agarrar. É provável que a exploração do seu universo solístico venha a passar por gravações em que a improvisação se veja obrigada a dividir atenções com a música escrita.

Outras das experiências desenvolvidas nos entretantos do RED Trio tem hoje a sua estreia. Na Culturgest, na segunda sessão do Festival Rescaldo, Pinheiro actuará em duo com Thomas Lehn – “músico incrível, que trabalha com electrónica analógica, pega em instrumentos dos anos 70 mas usa-os de forma totalmente distinta”, descreve. Rodrigo conhece bem o percurso de Lehn, mas até hoje o mais perto que estiveram de tocar juntos foi quando um desceu do palco e deu lugar ao outro. Depois, beberam umas cervejas e entenderam-se o suficiente para testarem a relação em concerto. A 28 de Fevereiro, o RED Trio toca em versão eléctrica no Teatro do Bairro, bateria + baixo eléctrico + Fender Rhodes e Moog. Mas, no imediato, Rodrigo regressa a uma estética do imprevisto que começou a provocá-lo ainda miúdo, na Covilhã, ao ver Cecil Taylor nos serões de sexta-feira da TVE2. Foi quanto bastou. A partir daí, a música deixou de ter forma. Passou a ser algo que se inventa a cada instante, sem uma reverência excessiva pelo passado. O passado que mais importa, na verdade, está apenas a um segundo de distância.

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