Um dia ideal para o peixe-banana, a primeira das Nove Histórias de J. D. Salinger (1919-2010), culmina com o suicídio de Seymour Glass, personagem central de boa parte da ficção do autor norte-americano. Este volume de contos foi o segundo livro publicado de Salinger, em 1953, sucedendo à obra que o imortalizou — e que foi o seu único romance —, À Espera no Centeio (1951). Embora Seymour e os seus pais e os seus irmãos — a família Glass — não aparecessem nesse romance, estariam em todas as obras seguintes. De tal forma esta família se tornou uma obsessão para Salinger que em Seymour: Uma Introdução é sugerido que Buddy, o segundo mais velho dos filhos dos Glass, seria o autor de À Espera no Centeio.
O suicídio de Seymour não é aqui denunciado com o perverso prazer de estragar surpresas aos leitores: é o acontecimento-chave em torno do qual se ergue quase toda a obra de Salinger e é impossível falar desta sem referir este episódio. A família Glass é a protagonista dos dois únicos livros que publicaria depois desta colectânea de contos — Franny e Zooey (1961) e Carpinteiros, Levantai Alto o Pau de Fileira e Seymour: Uma Introdução (1963) — e Seymour, mesmo quando não é o centro da narrativa, paira sempre sobre os irmãos como uma assombração demasiado material para se confundir com a nuvem dos cigarros que os Glass fumam compulsivamente.
A forma como se constrói o puzzle que é a história desta família dependerá sempre da ordem em que o leitor escolher ler os livros. Nas Nove Histórias encontrará três peças do enigma: o já referido conto inaugural, o segundo, Pai torcido no Connecticut, e o quinto , Em baixo no bote. Um dia ideal para o peixe-banana, o primeiro, é o único que se assemelha a uma pista verdadeira. Nele, Seymour é-nos apresentado primeiro através de uma conversa telefónica entre a sua mulher, com quem passava umas férias na Florida, e a mãe desta. Poucas páginas depois, o conto centra-se na sua ida à praia e num diálogo que estabelece com uma menina, Sybil, acerca dos fascinantes peixes-banana. A obra-prima que é este conto começa a construir-se no telefonema da mulher. A mãe da mulher teme pela filha, mas esta parece achar apenas divertidos os desvios do marido, mesmo quando são literais, como a sua tendência para, ao conduzir, ficar de tal forma hipnotizado pelas árvores que ladeiam a estrada que sente o impulso de conduzir contra elas.
Os distúrbios de Seymour podem ou não ser comprovados no diálogo que mantém com Sybil: pode parecer o discurso de um louco, mas as personagens de Salinger têm sempre esta tendência para falar com as crianças como se estas fossem gente crescida (aliás, as crianças de Salinger são quase sempre muito adultas). Conseguimos ouvir a voz de Seymour e a forma séria e eloquente como diz coisas como: “Whirly Wood, Connecticut? (…) Isso por acaso não é perto de Whirly Wood, Connecticut?” ou “Azeitonas... gosto. Azeitonas e cera. Nunca vou para lado nenhum sem elas.”
Este diálogo maravilhoso, imbuído da ondulação poética em que Salinger era mestre, anestesia o leitor com um leveza e boa disposição, para depois, em apenas uma página, nos dar a violenta chapada que é o regresso de Seymour ao quarto. Tem uma interacção bizarra, e agora sim assustadora, com uma inquilina do hotel no elevador, chega ao quarto, tira uma arma da mala e suicida-se com um tiro na têmpora direita. É um conto sublime, que nada perde por já sabermos em que consiste ou como acaba. Consegue ser tanto mais sublime quanto??? mais vezes o lemos.
Os outros dois contos relativos à família Glass não chegam a ser peças completas. São, por assim dizer, pequenos apêndices de uma história que, na verdade, não se aproxima sequer de estar completa após lida toda a obra conhecida de Salinger. Pai torcido no Connecticut é um encontro entre duas ex-colegas de dormitório dos tempos da universidade, Mary Jane e Eloise. Pertence ao universo Glass porque Eloise, a anfitriã, era a viúva, entretanto casada novamente, de Walt Glass, morto no Japão já depois do fim da guerra, num acidente militar com explosivos. No diálogo das duas amigas traça-se um breve retrato de Walt e explica-se a sua morte, mas é um conto que vive de muito mais do que isso. Há, também aqui, uma criança peculiar, a filha de Eloise, e uma deliciosa conversa sobre relações, regada a whisky e envolta no fumo de muitos cigarros.
Em baixo no bote, a última história dos Glass nesta colectânea, tem como protagonista Boo Boo Tannenbaum, nome de solteira Glass, e o seu filho Lionel. É-nos dado, uma vez mais, o diálogo adulto-criança, desta feita mãe-filho, e o talento de Salinger para este tipo de interacção não podia estar mais em evidência. É uma daquelas histórias em que nada acontece, mas das quais se sai de alma cheia. Um rapazinho metido num bote, atracado ao cais, do qual não quer sair, e a mãe a tentar convencê-lo. É só isto e isto é tanto.
Dos restantes seis contos, só dois não envolvem crianças ou adolescentes. Um deles, A fase azul de De Daumier-Smith, estando longe de ser fraco, é o elemento mais destoante do conjunto. Contudo, se por um lado parece não encaixar harmoniosamente numa selecção que, sem este texto, seria coerente ao expoente da perfeição, por outro lado permite-nos tomar contacto com uma versatilidade da qual, até aqui, podíamos duvidar. Quanto à outra história livre de crianças, Linda boca e verdes meus olhos, é génio puro. De novo, nada acontece. Um homem está na cama com uma mulher, o telefone toca, ele atende. Todo o conto é o diálogo que ele mantém com este interlocutor, que faz queixas da mulher que ainda não voltou para casa e em quem não confia. O leitor apercebe-se cedo de que a mulher de que o outro fala é, muito provavelmente, aquela que está na cama com o amigo, mas no fim do conto há qualquer coisa que vem baralhar as ideias, qualquer coisa que instala qualquer coisa — o medo, a loucura ou outra coisa qualquer. Certamente o génio de Salinger.
Dos quatro contos ainda não referidos, aqueles em que esse génio vibra com repercussões mais fortes são Para Esmé — com amor e sordidez e Teddy. Para Esmé é a mais triste das nove narrativas. É a história de um soldado americano em Inglaterra, onde se prepara para o desembarque na Normandia — ecos da biografia do autor. O conto divide-se em duas partes emocionalmente opostas. Na primeira, o soldado conhece uma rapariga que canta no coro da igreja e com quem acaba por se cruzar e manter um loquaz diálogo num café. Na segunda, a guerra terminou e o soldado é uma pessoa diferente. Aqui, sim, justifica-se não levantar o pano. Diga-se apenas que estamos perante uma obra-prima de arquitectura narrativa: todos os pormenores, desde a construção frásica aos gestos descritos, confluem para criar o ambiente certo que cada uma das duas partes da história exige. É uma pequena maravilha ao alcance apenas dos mais dotados entre os mais dotados. Ao alcance apenas de Salinger.
Teddy é o conto que fecha o livro e fá-lo elevando a melancolia, que atravessa todo o livro, à sua potência máxima. O protagonista é um miúdo de dez anos que começa por nos parecer “apenas” sobredotado e acaba por se revelar, além de sobredotado, uma criança “especial”, crente fiel em Deus e na teoria vedanta da reencarnação, praticante de meditação capaz de “sair das dimensões finitas” e, aparentemente, capaz de prever com exactidão quando e como vão morrer as pessoas. Salinger coloca este rapaz num cruzeiro, o local menos esperado para um místico de dez anos, e é este antagonismo gritante entre o cenário e a narração que confere a Teddy aquela graça que Salinger nos traz sempre, por mais melancólicas, tristes e depressivas que sejam as suas histórias.
Das Nove Histórias falta só referir Pouco antes da guerra com os esquimós, a menos melancólica mas também a que menos vive para lá das páginas, e O homem que ri, um relato fantástico de aventuras, onde a China faz fronteira com Paris, intercalado com a história de amor do monitor de um grupo de escuteiros.
Nove Histórias é um daqueles livros dos quais não se sai como se entrou. Pode sair-se mais feliz ou mais triste, dependendo da forma como se vive a leitura, mas nunca indiferente. É um daqueles livros de contos que envergonham muitos bons romances. É um daqueles livros que obrigam um leitor que gosta de sublinhar passagens e de guardar citações a ter um lápis sempre à mão. É um daqueles livros a que se regressa depois de termos lido vários livros “apenas” muito bons, em busca do conforto do deslumbramento. E é, acima de tudo, e aí reside o génio, um livro que sabe deslumbrar apenas nos momentos certos. Não é um espectáculo de fogo-de-artifício ininterrupto, é a estrela cadente inesperada que nos faz parar na noite, que nos indica o caminho.
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