Quem vê carros vê corações

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Les Choses de la Vie (1970) deve ser hoje mais bonito do que em 1970: o tempo apagou o potencial de tour de force realista das cenas do acidente, e sobra uma coreografia lenta a pairar acima do realismo

As cenas mais bonitas de gente dentro de carros estão nos filmes de Claude Sautet. 

É comoventíssimo ver Yves Montand e Sami Frey a competirem por Romy Schneider em César et Rosalie (1972): um é um rei da sucata a galgar terreno da periferia para um centro, compensando com intensidade e com sorrisos de charuto a ansiedade sobre o seu estatuto, e o outro é um plácido artista, cerebral e à l’aise com a sua idade e posição social. Romy olha para um, Romy olha para o outro, cada um ao volante do seu automóvel, e Romy não abdica de nenhum. Embora sejam as personagens de Montand (César) e Schneider (Rosalie) a darem o título ao filme, esta história é à trois, porque inclui David (Frey). E há que contar com o amor entre eles, César e David. 

Há cenas de grupo, há cenas de um casamento com uma bagarre automobilística a ser estancada pela vegetação, o tecido social em movimento na França de Pompidou, conflito e pacificação ao som da música de Philippe Sarde. E depois, como variações musicais a partir desta estrutura coral, o espaço para cada par fazer ouvir com outra nitidez a sua melodia, César e Rosalie, Rosalie e David, César e David. Cada par dentro do seu automóvel em ilusão de movimento, porque projecções e transparências — eis o artesanato de estúdio ao serviço — fabricam a realidade que está lá fora.

É assim também, com uma estrutura musical ainda mais coreografada por esse amante de jazz que foi Claude Sautet (1924-2000), Vincent, François, Paul... et Les Autres (1974). A França, agora de Valéry Giscard d’Estaing, já não está em movimento, imobiliza-se perante o choque petrolífero dos anos 70, e Vincent (Montand), François (Michel Piccoli) e Paul (Serge Reggiani) são cinquentões aburguesados, alguns deles até ex-revolucionários, com a profissão e os afectos atolados na crise. Dentro dos carros Sautet impõe o silêncio à volta da melodia das personagens. Para elas mostrarem o quão ternurentas são nas perdas, quando negoceiam o adiamento da queda — por eles passava um jovem Gérard Depardieu, que naquele momento negociava, com a mobilidade de um boxeur, o seu futuro e não pedia licença nem às outras personagens nem aos outros actores. 

Um ano depois, em Amici Miei, Mario Monicelli filmaria a crise dos cinquentões italianos. O tom era de kamikaze, uma nobreza orgulhosa na autodestruição. Os homens de Sautet são seres em fuga, e é em frente às suas perdas que se fortificam as mulheres. Falar deles para falar delas, que naqueles anos 70 já não pediam licença para negociarem a liberdade — para cada Michel Piccoli ou Yves Montand havia sempre uma Romy Schneider. Neste retrato de impotência afectiva, o Piccoli de Max et les Ferrailleurs (1971) demonstra uma teimosia e uma obsessão na forma de arquitectar os seus fins, e assim na forma de apressar o seu fim, que são inéditos no cinema de Sautet — é o mais próximo que uma personagem dos filmes deste cineasta pode estar de uma personagem dos filmes de Jean-Pierre Melville ou de Robert Bresson. 

Vemos Max pela primeira vez no carro da polícia: está tão obcecado pelo seu dever que incentivará criminosos a praticarem o crime para os apanhar em flagrante. Vêmo-lo no final no carro da polícia, mas agora como prisioneiro, em direcção ao buraco existencial que armadilhou aos que praticaram o delito. Num e noutro momento, estar com Max é ser tocado pela sua opacidade e provar o seu mundo imóvel, uma espécie de calafrio em câmara lenta pelo qual só Daniel Auteil, em Un Coeur en Hiver (1992), voltará a ser responsável. 

Mas em geral as personagens de Sautet são ternos perdedores ao esbracejarem tarde de mais perante o que passa — o que já passou — por eles. Foi dessa forma que o cineasta se reinventou no segundo começo da sua carreira. Na sequência da frustração causada pelo facto de Classe Tous Risques (1960) e L’Arme à Gauche (1965), exercícios à volta do noir, não terem sido registados nos radares que estavam então todos voltados para a Nouvelle Vague, Sautet refugiou-se na função de médico de argumentos em dificuldades (para Georges Franju, para Jacques Deray, para Marcel Ophuls...). O que mais tarde iria pesar na sua notoriedade, para o bem ou para o mal, de homem do sistema. Seria com Les Choses de la Vie (1970), quando meteu Michel Piccoli no carro para a última viagem da sua vida, que se inauguraria. Um homem, o carro, o acidente e a memória de uma vida que ele já tinha deixado passar. Deve ser hoje um filme mais bonito do que em 1970. Porque o tempo apagou o potencial de tour de force realista das cenas do acidente, e sobram gestos silenciosos e uma coreografia lenta a pairarem acima do realismo. Fica mais ferida a melancolia. Mas todas as cenas de carros dos filmes de Sautet destacam-se hoje, de forma mais luminosa, de uma retórica narrativa pronta-a-utilizar: sobressai a repetição, a insistência, anula-se ou perverte-se a funcionalidade. 

Vieillot e grisaille

As conversas nos carros... tal como a chuva, os vidros através dos quais se vêem as personagens, esses maduros com as suas suaves neuroses do coração... Sautet ficaria etiquetado como cineasta condescendente com a burguesia, incapaz de, como Luis Buñuel ou Claude Chabrol por exemplo, expor os vícios de um mundo vieillot egrisaille, como se ironizava. Defendido pela Positif, mas ignorado pelos Cahiers, terá sido vítima, assinala Jay Adler no texto que escreveu em 2012 para a Senses of Cinema, da História, por um lado, já que a erupção da Nouvelle Vague o tornou imediatamente culpado do crime de ortodoxia, e por outro do preconceito que obriga à fixação de um statement político sobre a “classe média”, que estaria privada do particular, dos sentimentos, para ficar refém do político e do social. 

É do mesmo ano, 2012, um texto publicado na Film Comment em que Bertrand Tavernier, recusando a imagem de um cineasta que alienou um qualquer ponto de vista sobre a realidade que mostrava, vê em Vincent, François, Paul...et Les Autres uma premonição não da crise petrolífera dos anos 70, de que já era contemporâneo, mas da crise de hoje (Vincent, François, Paul... et Les Autres era também um filme de que Truffaut gostava: quando o viu, escreveu a Sautet “Tu es dans le cinema comme un poisson dans l’eau”).

Tudo isso deve significar que estamos perante um processo de reavaliação em marcha. Nos regressos que se fazem, também, aos factos da sua biografia, desfazem-se clichés ou “verdades” fundadas em mitos: Sautet foi um produto da pequena burguesia da banlieue, flirtou com o Partido Comunista, onde esteve filiado até aos anos 50 mas continuou a ser um homem de esquerda — e não era nada suave, ao que parece, já que se era afectuoso para com a sua família de cinema, os técnicos, argumentistas e actores que o acompanhavam (Romy Schneider dizia que fora o realizador máximo com quem trabalhara), tinha momentos de brutalidade. Piccoli usou isso como âncora para o ajudar nas cenas de Vincent, François, Paul... et Les Autres em que, às oito da manhã, tinha de simular no plateau uma personagem colérica.

O mundo que Sautet retrata é um mundo misto, o tecido que se movimentava nos cafés das periferias francesas onde ele cresceu. Isso fascina alguém como Abdellatif Kechiche, cineasta franco-tunisino que, numa entrevista ao Ípsilon a propósito da estreia em Portugal do seu A Vida de Adèle, assumia a influência dessa obra. A surpresa de o ver a destacar um realizador que foi fechado na gaiola do cinéma de papa e de uma qualité française desfaz-se quando se experimenta a música do cinema de Sautet. Une Histoire Simple, de 1978, e Vincent, François, Paul... et Les Autres são os favoritos de Abdellatif, que admira ainda outro, um título geralmente não muito amado: Garçon!, de 1983, com Yves Montand. Até se podem traçar hipóteses de aproximação entre os dois cineastas: um percurso também da periferia em direcção a um centro, o que no caso de Kechiche é, mais do que o sucesso de A Vida de Adèle, a imobilização numa espécie de género com tradições francesas, o do filme sobre a educação sentimental; ainda, e sobretudo, o fascínio por um cinema de raiz popular, que fale das pessoas e dos seus problemas, que misture o social e o íntimo numa musicalidade coral e que faça isso chegar ao maior número de espectadorfes — é a utopia que está em O Segredo de um Cuscuz (2007), por exemplo, o filme de Kechiche que mais vibra com o desejo de convocar para a sala pessoas e mundos distantes das vidas desse filme.

“O pintor das nossas almas”, chamou-lhe Michel Piccoli. “Garder le Calme!!! Devant la Dissonance!!!” é o seu epitáfio, gravado na pedra tumular do cemitério de Montparnasse.

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