Paolo Nespoli: “Um astronauta é uma pessoa normal capaz de trabalhar em qualquer ambiente”
Seis meses no espaço não foi muito tempo para o italiano Paolo Nespoli. Mas lá em cima não se sentiu nem italiano, nem europeu, sentiu que pertencia à Terra, diz o astronauta, que defende um projecto espacial mundial para ir a Marte e se sair do sistema solar. As estrelas continuam a iluminar este caminho.
Como foi filmar o First Orbit na ISS?
Quando me perguntaram se queria entrar no projecto pensei: “Uau!, vou estar no espaço e fazer as mesmas coisas que Iuri Gagarin.” Foi muito bom e foi surpreendente ver como coisas relativamente simples – a viagem de Gagarin para os padrões de hoje foi simples – são complicadas quando se tentam fazer pela primeira vez, porque não se sabe exactamente o que se está a passar, existem muitas dúvidas. Deu-me a oportunidade de viver um pouco a visão que Iuri Gagarin teve do planeta.
Como é tirar fotografias da Terra a partir do espaço?
Na ISS, numa hora dá-se uma volta quase completa ao mundo. É Inverno? Espera-se alguns minutos e já é Verão. Está-se por cima do deserto? Em minutos estaremos por cima das montanhas e depois de oceanos, da Austrália, do Sara. A partir do espaço tem-se este modelo, que é a Terra, que muda de roupas continuamente.
Numa das suas fotografias vê-se Lisboa à noite. Mas as luzes que tornam Lisboa reconhecível impedem-nos de ver as estrelas.
Quando olhamos para zonas habitadas à noite, vêem-se os impactos que temos no planeta. Toda a luz vinda da Terra que se vê no espaço é energia desperdiçada. Estamos a mudar a natureza para que ela seja melhor, mas essas mudanças são pesadas. Com as luzes deixámos de poder ver as estrelas. Hoje, as pessoas sabem menos sobre estrelas.
Porque é que é importante olhar para as estrelas?
Faz-nos valorizar mais a natureza, faz-nos ver que quase de certeza não estamos sozinhos no Universo, faz-nos valorizar o que existe lá fora. São questões filosóficas, fazem com que nos foquemos em locais longínquos e impossíveis, que precisam de ser explorados e conhecidos.
O que sentiu quando viu os astronautas a alunarem?
Era um miúdo, por isso fiquei cativado pela maneira estranha com que caminhavam. O que me entusiasmou mesmo foi quando eles levaram o carro para a Lua e andavam de rover. Esta ideia de ir para a Lua e guiar o jipe lunar era o que eu gostaria de fazer. Era fixe.
Como é que define um astronauta?
Definiria um astronauta como uma pessoa normal capaz de trabalhar em qualquer ambiente. Para ser um bom astronauta, é preciso trabalhar como um médico quando é necessário, como metalúrgico, como um canalizador, um electricista. Quando se está no espaço, é-nos pedido para fazer tudo. E não é preciso ser-se super, é preciso ser-se bom em tudo. É preciso trabalhar com o braço mecânico [da ISS], fazer saídas no espaço, pilotar uma nave, não se pode ter medo de nada, tem de se aceitar os desafios e cumpri-los.
O que foi a coisa mais assustadora que fez?
Acho que as coisas são assustadoras quando se está em situações desconhecidas e tem-se medo que alguma coisa bastante má aconteça. Em todos os treinos que fiz, fui levado a lugares que nunca experimentei, mas nunca senti que havia um perigo real. Mas meteu-me medo quando estava a trabalhar no espaço com uma experiência muito complicada, que custou milhões de dólares e 5000 pessoas trabalharam nela durante dez anos. A hipótese de fazer um gesto e crac! [a experiência estraga-se] meteu-me medo.
E qual foi a experiência mais entusiasmante?
O processo de nos tornarmos uma pessoa extraterrestre. Quando se vai para o espaço, somos terrestres, pensamos em termos da gravidade. Quando nos apercebemos de que temos de mudar, há uma série de pequenas descobertas diárias. Sempre achei que a mesa onde comíamos na ISS não estava bem. Passados quatro meses, decidi que tinha de perceber porquê. A mesa estava colocada como as mesas na Terra. Mas estávamos no espaço. Por isso, separei-a da parede e comecei a brincar com ela, virei-a, rodeia-a, desloquei-a, e, de repente, pu-la quase na vertical. Fixei-a à parede, experimentei-a e depois chamei mais astronautas e pedi-lhes para experimentar a mesa. Todos olharam uns para os outros como quem diz: “Uau, isto funciona!”
Como é estar na ISS?
Pode-se voar como o super-homem, mover objectos que não pesam. Ficar de cabeça para baixo e fazer alguma coisa naquela posição. Senti também que estava a fazer coisas interessantes, importantes e úteis. Senti um propósito na vida. Depois, fala-se com a comunicação social dos Estados Unidos, com o Papa, etc. Com o telefone, pode-se literalmente fazer uma chamada para qualquer pessoa, vão atender. Escreve-se um tweet e de repente 3000 pessoas respondem.
E qual era o seu trabalho específico?
Cerca de 50% do meu trabalho no espaço era a certificar-me de que a as coisas funcionavam. Mudar filtros, equipamento, arranjar coisas que estavam estragadas. É como ser um condutor de um carro, mas se o carro se avaria somos nós a arranjá-lo. Depois, 40% do tempo era utilizado para fazer experiências, nas quais se pode ser objecto de estudo ou executor. Se é preciso tirar sangue e analisá-lo, ou o tiramos a nós próprios ou o tiramos a outra pessoa. Depois põe-se na centrifugadora e analisa-se. Também fizemos muitos testes psicológicos, para perceber como é que o cérebro funciona no espaço. No resto do tempo, fazíamos actividades educativas.
A sua mãe morreu quando estava na ISS.
Nestas situações, parece impossível sentirmo-nos incapazes de continuar a fazer o trabalho diário. Por isso, estava no espaço e queria fazer coisas, mas tornou-se óbvio que não podia. Acabei por perceber que perder alguém, um amigo, um parente, é um acontecimento tão catastrófico que é inexplicável. É uma experiência traumática onde quer que se esteja. Não havia nada que pudesse fazer para melhorar essa experiência. A única coisa a fazer era aceitá-lo.
Qual é a importância da ISS?
Vamos chegar a um momento em que não vai ser sustentável vivermos aqui, não temos controlo de quantas pessoas pomos no mundo. A ISS é muito importante para aproveitar o ambiente de microgravidade e fazermos experiências que não podem ser feitas na Terra. Devemos ter um laboratório no espaço, como deveríamos ter um laboratório no oceano. Mas deveríamos concentrar-nos também em explorar o espaço. Ir a Marte, encontrar uma forma de viajar para fora do sistema solar.
Há falta de ambição na exploração espacial?
Temos um mundo cheio de pequenos países que têm um problema associado à democracia. Temos uma classe política eleita a cada dois, três anos. A classe política diria “nem pensar” a um programa para ir a Marte, que custa 200.000 milhões dólares e demoraria 15 anos. Fazemos programas que duram dois, três anos, com resultados a curto prazo, e que custam dois ou três milhões de euros. Esses grandes programas nunca são feitos, o que para mim é um problema. Temos de estabelecer projectos mundiais. Quando estive na ISS, não me senti italiano, nem europeu, senti-me terrestre, senti que pertencia à Terra. Deveríamos fazer uma missão por pessoas da Terra.
Tenho a certeza de que, se nos propuséssemos fazer algo muito ousado como ir a Marte, iríamos inventar tecnologias que tornariam a vida melhor, iriam ajudar-nos a utilizar os recursos de uma forma mais eficiente e menos poluidora. Quando pensarmos em termos globais e enviarmos seres humanos para Marte, isso acontecerá. Ou então os chineses farão isso, não têm um sistema democrático, decidem gastar 200.000 milhões dólares para ir a Marte em 15 anos, e fazem-no.
E o Ocidente ficaria para trás?
Sim, mas tudo bem. Roma foi a capital do mundo há 2000 anos, e hoje não é. Se calhar, no futuro, o centro do mundo será Pequim, e depois será outro sítio qualquer.
Acredita que a missão privada Mars One, liderada pelo holandês Bas Lansdorp, que quer enviar pessoas para Marte sem regresso à Terra, é possível?
A Mars One é um conceito muito interessante. Eles abriram um concurso para a missão e tiveram cerca de 70.000 candidatos. Metade deles serão malucos, mas a outra metade provavelmente não é. Quando os navegadores portugueses saíram para explorar a América do Sul, julgavam que iriam voltar numa semana, num mês? Quantas vezes as pessoas pegavam nas suas famílias e iam para um sítio sem pensar no regresso. O conceito de exploração é exactamente o mesmo, é ir a algum sítio e fazer alguma coisa diferente. Há méritos históricos, psicológico e também tecnológicos na Mars One. Há a ideia de que hoje, com a tecnologia que temos, é possível ir a Marte, o problema é voltar. Por isso eles dizem: “Porquê voltar? Ficamos lá.”
Iria numa missão sem bilhete de regresso?
Porque não? Talvez.
Gostaria de voltar ao espaço?
Se pudesse, adorava. Mas não há muitas hipóteses, a Europa não tem naves espaciais, dependemos da ligação com os Estados Unidos ou com outros parceiros, há muita política pelo meio.
As crianças portuguesas não têm nenhum astronauta português como exemplo, como prova viva que é possível nascer em Portugal e ser um astronauta. O que lhes diria?
Muitos portugueses candidataram-se a astronauta pela ESA. O problema é que ser-se um astronauta profissional hoje é muito difícil. Muitas pessoas perguntam-me: “Quero ser um astronauta, o que faço?” Não sei. Não é [uma receita] como fazer risotto. Ir tirar Engenharia só porque eu tirei Engenharia para ser astronauta é errado. O facto de Portugal não ter astronautas não quer dizer nada. A maioria das pessoas não pensam nos 15 anos de treino para ser astronauta, pensam em voar no espaço. Se ser astronauta é voar no espaço, então é como as pessoas que querem voar até aos Estados Unidos. Elas precisam de ter licença de voo, treinar anos? Não, compram um bilhete. Se o objectivo é ir só ao espaço, o que permite sentir a microgravidade, olhar para a Terra, então não é preciso ser-se astronauta. O importante é descobrir o que mexe connosco, qual é a paixão que temos e ir atrás dela. Pode ser conduzir um táxi, ser fotógrafo, jornalista. É encontrar aquilo que se faz com paixão e fazê-lo como deve de ser, porque é aí que se é reconhecido.