Estado de emergência e greve geral em Trípoli após dezenas de mortes
Governo não consegue controlar as múltiplas milícias armadas que lutaram contra Khadafi. População da capital revoltada com a impotência das autoridades.
Os confrontos sangrentos de sexta-feira e sábado, que fizeram pelo menos 46 mortos e 400 feridos, deixaram ainda mais visíveis as fragilidades do Governo, que não consegue controlar as várias centenas de grupos armados.
Muitas destas milícias (mais de 1000, espalhadas pelo país) lutaram conta Khadafi e são agora pagas pelas autoridades para se substituírem às forças de segurança oficiais, mas actuam de acordo com as suas próprias agendas – religiosas, de controlo de petróleo ou domínio do mercado da emigração para a Europa – e respondem perante os seus líderes tribais.
O descontentamento na capital foi verbalizado pelo líder do Conselho da cidade, Sadat al-Badri. "Declarámos uma greve de três dias a partir de hoje [domingo], mas se as nossas exigências não forem satisfeitas, iremos prolongá-la. Não vamos negociar com eles. As coisas são claras como o Sol: exigimos uma decisão", disse o responsável, encostando à parede o primeiro-ministro, Ali Zeidan: ou o Governo começa a controlar as milícias armadas, ou a situação na Líbia pode passar de muito má a ainda pior.
Mas se já poucos acreditavam em Ali Zeidan para controlar o país, o que restava da sua autoridade esfumou-se há um mês, quando foi sequestrado por elementos da aliança Centro de Operações dos Revolucionários da Líbia, formada por milícias próximas do seu próprio ministro do Interior. O sequestro durou poucas horas, mas serviu para ilustrar a autêntica manta de retalhos em que a Líbia se transformou.
Fartos da presença de grupos armados em Trípoli, centenas de cidadãos caminharam na passada sexta-feira até ao quartel-general da milícia da cidade de Misrata. Os manifestantes foram recebidos com extrema violência pelos combatentes, que receberam reforços vindos de Tajura, a cidade que ficou conhecida como uma das mais ferozes opositoras de Muammar Khadafi durante a guerra civil de 2011.
Pelo menos 45 pessoas foram mortas e 500 ficaram feridas, em confrontos que envolveram artilharia pesada e levaram ao sobrevoo da cidade por caças da Força Aérea líbia. Um dia depois, no sábado, pelo menos uma pessoa morreu numa troca de tiros em Tajura, a porta por onde passam as milícias armadas entre Misrata e Trípoli, afastadas por 200 quilómetros.
O primeiro-ministro, Ali Zeidan, exigiu a saída da capital de todas as milícias, mas a fragilidade das forças armadas do país – ainda mal preparadas após a violenta transição política dos últimos anos – não deixa ao Governo outras alternativas que não sejam tentar acalmar os grupos com palavras e incluir alguns deles nas suas folhas de pagamentos.
"O povo não aceita as demonstrações de força e as ameaças contra o Estado com armas que foram apreendidas durante a revolução [contra Muammar Khadafi]", afirmou o primeiro-ministro, em conferência de imprensa. Ali Zeidan deixou ainda as suas condolências "às famílias dos mártires" e classificou o derramamento de sangue em Trípoli como "lamentável".
Mas a declaração mais importante do chefe do Governo ficou reservada para a análise do futuro próximo e disse muito sobre o estado em que se encontra a sociedade líbia: "As próximas horas e dias serão decisivas para a história da Líbia e para o sucesso da revolução."
As horas seguintes vieram mostrar que a situação na Líbia está cada vez mais instável, com a notícia do sequestro do número 2 dos serviços secretos, Mustafa Noah, na tarde deste domingo. O responsável acabara de chegar ao aeroporto internacional de Trípoli, após uma visita à Turquia, e preparava-se para entrar no seu automóvel, quando foi atirado para o interior de uma carrinha, avançou a Al-Jazira. As fontes contactadas pela estação dizem que Mustafa Noah seguia sozinho, sem a protecção de guarda-costas.
Dos Estados Unidos – um dos países que ajudaram a derrubar o regime de Khadafi – chegaram também palavras de lamento e apreensão. O secretário de Estado, John Kerry, mostrou-se "profundamente preocupado" com os acontecimentos dos últimos dias em Trípoli. Em comunicado, Kerry declara que "os líbios não arriscaram as suas vidas na revolução de 2011 para que a violência continuasse".
O objectivo, diz o responsável norte-americano, era "o estabelecimento de um sistema democrático, em que as vozes do povo líbio pudessem ser ouvidas através de meios pacíficos". Sem concretizar, John Kerry deixou uma promessa: "Os Estados Unidos vão continuar a trabalhar com as autoridades líbias no desenvolvimento das suas capacidades para garantirem a segurança e uma boa governação ao seu povo."