António Ramos Rosa: “A necessidade de escrever não se satisfaz”
Nesta entrevista, feita em 1994 ao então jornalista do PÚBLICO Mário Santos, Ramos Rosa explica como faz poesia.
Que livros tem para publicar, proximamente?
Há livros que comecei a escrever e não completei, há outros que já tenho completos e há o livro actual, o livro em que estou a trabalhar. É um livro que iniciei há muito pouco tempo e que tem como título Incidências e Obstáculos. Tenho outro livro que penso que será publicado pela editora Pedra Formosa, de Guimarães, mas não sei quando. É inteiramente baseado no livro Movimento e Repouso do poeta Carlos Poças Falcão. Eu abandono provisoriamente livros que comecei a escrever porque entretanto me aparece a ideia de um novo livro em que tenho que inserir os poemas que vou escrever e que não estão em consonância com os anteriores.
Os livros obedecem a um projecto ou são organizados posteriormente, a partir da produção poética de determinado período?
Habitualmente escrevo um poema sem saber bem o que é que esse poema vai ser. No entanto, tenho uma noção, por muito vaga que seja, de que esses poemas, que começo a escrever para iniciar um novo livro, têm a unidade que é necessária para constituir um livro consistente.
O título tem alguma função na “construção” do livro?
Primeiro escrevo um poema de um livro que ainda não tem título e é a partir desse poema que eu, habitualmente, ponho o título. Portanto, o título é, ao mesmo tempo, posterior a um poema já escrito, mas anterior ao livro todo.
Há sempre um primeiro poema que “programa” o livro?
Eu não tenho uma ideia anterior à realização poética... Habitualmente, os poemas que escrevo não constituem problema quanto a estarem ou não inseridos bem na noção que o título implica, na ideia, na unidade de um título. Porque essa noção, se assim se pode chamar, que realmente determina a unidade dos poemas, apesar de poder ser vaga, é bastante determinante.
A escrita dos poemas que integram cada livro é temporalmente concentrada?
Habitualmente é concentrada. Talvez tenha havido certas fases do meu percurso poético em que não havia essa concentração, mas desde há bastante tempo que escrevo concentrado num livro. Quer dizer, escrevo um livro mesmo: não escrevo apenas poemas que depois vou aproveitar para um livro, escrevo mesmo um livro, um livro de poemas.
E escreve um livro de cada vez ou trabalha simultaneamente em mais do que um projecto?
Habitualmente, escrevo um livro só, de cada vez. Acontece também que, como tenho vários livros incompletos, às vezes há poemas do livro que naquele momento estou a escrever que eu acho que não estão bastante dentro da unidade desse livro e então vou colocá-los noutro livro que está incompleto.
Falou em livros incompletos. Que tipo de critérios lhe permite determinar que um livro está “completo”, concluído?
Bom, isso é um bocado difícil de dizer. Naturalmente que há um factor quantitativo que, de certa maneira, é determinante. Por outro lado — como é que eu hei-de dizer? —, eu tenho a noção de que o livro chegou ao fim, mas isso não é algo que eu possa explicar. Não sei, é uma constatação que eu faço, mas de facto não é fácil de explicar...
Nos últimos anos tem publicado a um ritmo muito intenso, vários títulos por ano. A que se deve tão grande volume de escrita?
Eu trabalhava em traduções, que me ocupavam o dia inteiro, e tinha muito pouco tempo para escrever poesia. Mas a partir do momento em que, por uma questão de saúde, deixei de trabalhar em traduções, fiquei com o tempo todo livre e isso explica essa abundância de livros publicados. Um outro factor é, naturalmente, a necessidade interior de publicar, de escrever, e de procurar escrever sempre numa linha de investigação, numa linha de uma procura constante. É um factor importante, porque a necessidade de escrever não se satisfaz, é a necessidade de tentar dizer o que nunca se disse, de procurar dizer algo que é, digamos, informulado... Eu tenho um poema que diz que o poeta procura escrever sempre o primeiro poema e nunca o escreve. Mas esse primeiro poema persegue-o sempre em cada poema que ele escreve e ele persegue esse primeiro poema que nunca chega a escrever. É por isso que ele escreve sempre.
Apesar desse ritmo de publicação, tem muitos originais inéditos?
Tenho vários livros completos e não publicados e tenho outros livros incompletos. Actualmente não tenho pressa em publicar porque tenho publicado tanto, mas tenho sempre necessidade de publicar de vez em quando, porque os livros, para mim, não são para estarem na gaveta. Se os escrevo é para os publicar e é assim que tenho vários livros — talvez uns cinco ou seis — em várias editoras, livros que entreguei há vários anos e que não foram publicados ainda, sem que o editor me tivesse dado qualquer explicação...
É disciplinado no trabalho de escrita?
Escrevo todas as manhãs, durante três ou quatro horas. Deito-me muito cedo, porque acordo cedo e não sei ficar na cama sem fazer nada e então levanto-me e procuro escrever. Apesar de às vezes começar com alguma dificuldade, a partir de certo momento há, habitualmente, uma fluência muito grande. Trabalho entre as 6 ou as 7 horas até às 11 horas. Depois, à tarde, apenas passo à máquina o que escrevi. Só excepcionalmente é que escrevo um poema de tarde. Às vezes, à noite, estou deitado e vêm-me uns versos à cabeça e vou escrever. Mas não é frequente. A manhã é a altura em que estou com mais capacidade.
Essa regularidade é uma questão de disciplina ou é uma uma necessidade de outro tipo?
Escrevo porque sinto necessidade de escrever, claro! É uma coisa que também não se pode explicar muito bem... Escrevo porque há essa necessidade interior. Não sei dar outra explicação: é uma coisa que, de certa maneira, me é dada... Realmente, para mim, a criação poética é gratificante. Não é um suplício, é o contrário: mesmo quando escrevo poemas em que há uma certa negatividade, um certo sofrimento, digamos assim, esses poemas dão-me prazer. Aliás, isto é uma característica estética: um escritor explora um domínio que é negativo e no entanto, tanto para ele como para o leitor, a criação é um motivo de exaltação, é uma fruição.
Os poemas são escritos “de um jacto” e depois trabalhados?
Não, os poemas que escrevo não os elaboro depois. Depois de escrever um poema leio-o, mas pouco o altero. A maior parte das vezes não o modifico. Se há uma elaboração é ao nível da criação...
É uma elaboração mental, prévia?
Não, eu não sei o que é que vou escrever. O poema surge, o primeiro verso surge — de certa maneira posso dizer que ele me é dado —, e depois é um trabalho de coerência, de coesão, que se realiza com uma certa fluência, com uma certa facilidade...
Nunca há apontamentos, uma ideia, uma imagem, uma palavra que podem gerar um poema?
Não, habitualmente não.
Onde é que trabalha habitualmente? Em casa?
Sim, mas poderia escrever noutro espaço. O Volante Verde, por exemplo, foi escrito numa casa onde às vezes tenho passado férias. O ambiente era diferente, era aliás melhor do que este, tinha um jardim, vista para o mar, um espaço maior e talvez isso, o facto de haver mais espaço, de haver elementos naturais, árvores, mar, tudo isso influiu talvez nos próprios poemas que escrevi para esse livro.
Não necessita, então, de um ambiente especial, de silêncio, por exemplo?
Silêncio? Há, aqui ao lado de minha casa, umas obras terríveis, que fazem um barulho terrível! Mas, de certa maneira, isso perturba-me mais quando estou deitado a repousar: quando estou a escrever, enfim, abstraio-me um pouco... Estar isolado é uma condição essencial para escrever. René Char diz que “um grão de realidade pode pulverizar o poema”. Eu diria que todo o elemento exterior, e que vai perturbar esse isolamento, pode ser destruidor.
Entre a primeira versão, a passagem à máquina e a publicação não há, portanto, um grande trabalho de reescrita...
Não. Quando há, é ao nível de um pormenor, de uma imagem, de uma palavra... Modificar um poema estruturalmente já me tem acontecido, mas é muito raro.
Teve sempre essa relação feliz, fluente, com a escrita?
Nem sempre. Tive fases em que havia uma certa dificuldade em escrever ou em que não escrevia nada, ou escrevia muito pouco. Eram dificuldades interiores. Mas nestes últimos anos isso não tem acontecido, felizmente. Tenho tido — não sei como lhe hei-de chamar — essa capacidade de escrever. É uma grande recompensa para outras dificuldades da minha vida...