Tratamentos familiares

A Adega dos Lombinhos e o Hospital de Bonecas são casas que criam no nosso imaginário memórias já sentidas. No Hospital remedeiam-se alguns males, os que são remediáveis. Mas o fim da Adega não é remediável, e por isso, remediado está

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Pedro Soenen

Agosto já é passado, e em modo "rentrée" decidimos ser turistas na baixa da capital. Assim, o carrinho de bebé ficou em casa e aventurámo-nos com a Guadalupe sentada numa mochila às costas do pai. Desde sempre que conheci a baixa pombalina em processo de transformação, sujeita a obras intermináveis, em especial num ano de autárquicas. Mas o rosto da cidade começa a perder alguns dos seus ícones para dar lugar a projectos mais ou menos megalómanos. E Lisboa vale pelos seus detalhes.


?Durante a semana tinha lido que a Adega dos Lombinhos, na Rua dos Douradores, iria fechar, e como pretexto para matar a saudade dos velhos tempos, tive de confirmar a notícia. Uma pequena casa com 96 anos de vida, que ganhou por três anos consecutivos o reconhecimento do público, incluindo internacional, vai fechar, assim como quase 30 outros estabelecimentos tradicionais no quarteirão, para aí nascer um novo hotel... mais um. A continuar assim, teremos uma cidade repleta de hotéis, mas com pouco de genuíno para mostrar.


?A Adega tem um único minúsculo WC, e não tem cadeiras para bebés, mas os pequenos são mais bem recebidos aqui do que em muitos outros locais. Deixo o repto: para quem quiser saborear uns deliciosos lombinhos ou um prato simples de peixe ou choco frito, complementados por um divino arroz doce, poderá fazê-lo até fins de Outubro. Pela nossa parte, ficou a promessa de voltar, pois a pequena Lupe adorou o tratamento profissional e carinhoso daquela casa quase centenária, apanágios do bom serviço lisboeta. A qualidade encontra-se na simplicidade, independentemente da dimensão.


?O destino seguinte encontrava-se em plena Praça da Figueira: o Hospital de Bonecas. Um local único, misto de loja, oficina e museu, existe desde 1870 e propõe-se simplesmente reparar bonecas estragadas, para fruição tanto de pequenos como de graúdos, pois há tantas peças de plástico como de porcelana, tantas para brincar como para completar colecções valiosas. Sendo uma entrada de prédio, temos na loja um corredor repleto de miniaturas para se construírem casinhas de bonecas. A oficina e museu são escada acima e com uma visita guiada pela proprietária, descobrimos um verdadeiro hospital, com filas de espera e tudo!

Naquelas salas podemos encontrar peças dos anos 20 ou mais recentes mas que precisam de uma perna ou de um braço, de operações urgentes ou convalescenças prolongadas. Uma colecção inacreditável que nos remete para a nossa infância e para a dos nossos avós e trisavós. Apesar de ser um local claramente familiar, rivaliza com as maiores lojas de brinquedos do mundo, segundo a Reader’s Digest! Mais uma vez, "small is beautiful"... A Lupe a cada momento dizia ‘ahhh’, a cada esquina exclamava ‘dédé’, nome que dá aos seus bonecos preferidos.


?A Adega e o Hospital são casas que nos enchem de emoção e criam no nosso imaginário memórias já sentidas. No Hospital de Bonecas remedeiam-se alguns males, os que são remediáveis. Mas o fim da Adega dos Lombinhos não é remediável, e por isso, remediado está.

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