Emigração de ontem, como de hoje

Manuel da Bouça é homem pobre que trabalha o campo de sol a sol. Apesar de já não ser jovem, sonha ir para o Brasil e de lá voltar feito “brasileiro”, como muitos que foram e fizeram fortuna. Não é só ele: era tanta côdea entalada na garganta de fome que “em todas as aldeias próximas, em todas as freguesias das redondezas, havia o mesmo anseio de emigrar, de ir em busca de riqueza a continentes longínquos”, escreve Ferreira de Castro em Emigrantes. Manuel empenha as parcelas de campo e parte, com as mãos nos bolsos vazios, pronto a enfrentar adversidades.

A travessia do Atlântico é uma descrição tremenda, vívida: famílias inteiras num “curral flutuante”, vindas da Roménia, da Rússia, da Síria, de Itália, galegos e portugueses encatrafiados em terceira, amontoados como gado no convés, vários dias sem ver a luz, vomitando os corpitos débeis prostrados sobre catres imundos. Todos com um destino: Brasil. “Há muitas dezenas de anos que a cena se repetia — um cortejo interminável de famintos, que a Europa fabricava mas não alimentava, a não ser quando carecia do corpo deles para alvo dos canhões.”

Chegam e rapidamente os sonhos se desvanecem: “Já me convenci que ninguém enriquece só com o seu trabalho”, explica o jovem em quem Manuel depositou todas as esperanças e a quem sonhava juntar-se em Santos. Dantes havia trabalho, abundância. Mas a prosperidade acabou. Diz-se que é na América do Norte que há trabalho (e mais tarde vamos perceber que não é bem assim). No comércio não se arranja nada e Manuel, que tentou livrar-se do campo em Portugal, acaba empurrado para os cafezais, onde o esperam um salário miserável e uma exploração muito próxima da escravatura.

Emigrantes é de 1928 mas podia ser de hoje, deste Portugal dos “ei-los que partem” de saudade nos olhos, para regressarem anos, décadas depois, esperançadamente ricos ou pelo menos afortunados, bafejados pela sorte dos países prósperos, de crescimento económico, eldorados de riqueza e trabalho — então como hoje, Brasil e Américas (e, já no fim do romance, África). Apesar de ter sido escrito nas primeiras décadas do século XX, e de descrever com a bravura da experiência própria e o engenho da linguagem trabalhada, rendilhada, de Ferreira de Castro (e uma certa nostalgia por um Portugal perdido e um sonho de conquista falhado), o romance mantém intacta a sua actualidade. E deve ser lido hoje como uma exposição fiel das agruras da emigração, dos anseios, dos medos e das desesperanças dos emigrantes, quando ainda hoje o “grande conto” da emigração portuguesa é o do sucesso e da vingança pelo trabalho e pela sorte. Dos que falham não reza a história, dos que regressam mais pobres do que partiram, mesmo quando trazem fato novo para mostrar que subiram na vida. Como Manuel, que pouco amealhou mas tem vergonha da sua pobreza: “Súbita cobardia amarrava-o à mentira, perante os olhos ávidos dos vizinhos, daqueles velhos conhecidos, que o desprezariam se conhecessem a realidade.”

Nesta reedição da Cavalo de Ferro, que começou a resgatar toda a obra de Ferreira de Castro (segue-se A Missão, de 1954), acrescenta-se no final um texto autobiográfico, Pequena História de Emigrantes (1966). Nele o autor rememora, a propósito de uma viagem ao Brasil com escala em Cabo Verde, a sua própria experiência de emigração, quando tinha apenas 12 anos e partiu, da mesma freguesia de Manuel da Bouça — Ossela, Oliveira de Azeméis —, para Belém do Pará, onde trabalhou primeiro na selva amazónica, na borracha (experiência que daria origem ao romance A Selva, de 1930), e de seguida em Belém, regressando poucos anos depois a Portugal, sem riqueza acumulada. Acrescenta o autor que foi no Brasil que Emigrantes nasceu, primeiro ainda com o título Criminoso por Ambição, depois maturado pela sua experiência de vida. “Foi lá, entre o seu povo fraternal, liberto de todos os preconceitos de classes, que o meu espírito se formou.” Esse espírito também está em Emigrantes: “Ser português, ser italiano ou ser cá do Brasil, isso não tem importância. O que vale é ser proletário, é ser homem.” Esse espírito de denúncia, de luta pela justiça social, pela equidade, pelo fim da desigualdade de classe e da revolução valeu-lhe anos depois o epíteto de precursor (nas palavras de Jaime Brasil, “iniciador”) do Neo-Realismo em Portugal.

Emigrantes é um dos romances fundamentais de Ferreira de Castro e dos primeiros anos do século XX na literatura portuguesa. Segundo Mário Sacramento, a obra fecha o ciclo dos viajantes, peregrinos e aventureiros portugueses, ciclo “que a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto abrira”. Pela sua actualidade, pela sua reflexão sobre o drama da emigração, deve ser lido hoje, resgatando assim um escritor de linguagem riquíssima, adjectivante, rigorosa e de consideração crítica pela geografia humana que tem sido injustamente esquecido.

Sugerir correcção
Comentar