Rolem as cabeças
Ao contrário dos protagonistas desta História, os leitores podem desfrutar da ironia de Hilary Mantel.
Está sempre muito frio na Inglaterra de Hilary Mantel e não há lareiras, peles ou jóias que amenizem o calafrio que percorre os corpos dos seus protagonistas neste O Livro Negro, sequela de Wolf Hall (também agraciado com um Booker), com Thomas Cromwell como epicentro de um furacão num reino em rápida mudança religiosa, política e social. E embora a acção deste romance comece no Verão, não há nada de caloroso na “orgia de desmembramento” observada por Cromwell e pelos seus nobres convidados durante a caçada com falcões que Mantel esgrime habilmente, como metáfora dos acontecimentos que se seguem. Ao longo do livro, os seres humanos imitarão as aves de rapina, predando sem medo, sem perdão e sem hesitação quando se lançam sobre as suas presas, embora voltem a poisar, com relutância, no punho engalanado e protegido dos seus amos e senhores.
A forma como Thomas, filho de um ferrador cervejeiro, se eleva à categoria de braço direito do rei Henrique VIII, para quem faz o trabalho sujo, mudando destinos com a facilidade de um prestidigitador, é algo que, por trás das suas costas, as famílias da antiga nobreza comentam, recusando-se a compreender e muito menos, a aceitar. Cromwell é astuto, maquiavélico e prudente. Vigia, observa e analisa, quer uma Inglaterra “moderna”, abastada, bem alimentada, livre de superstições e de mediocridade. Sabe bem o que é pertencer ao povo assustado e fraco que sofre a fome e o frio, dividido pela fé, volátil e caprichoso, ao povo que se junta em matilha para presenciar as execuções daqueles que pouco antes tinha aplaudido com fervor. Ele, Cromwell, correu mundo, aprendeu, serviu os príncipes europeus, estudou-lhes os hábitos, as manhas. (Um pouco antes do torneio que marca o ponto crucial do livro, quando Henrique sofre um acidente, Cromwell recorda a sua amizade de passagem com um português “especialista em justas” que lhe ensina todos os truques numa noite, em Veneza...)
Thomas deve tudo ao rei: a sua fortuna crescente, as suas casas, o título (que recusa), a influência, o poder. No entanto, constata ele no segredo da sua mente tortuosa, Henrique também lhe deve tudo: o afastamento da primeira mulher, Catarina de Aragão, a anulação do primeiro casamento, a força para se separar de Roma, as complicadas manobras diplomáticas, o apaziguamento das velhas famílias aristocráticas, a organização das casas e do reino, a forma implacável como retira aos papistas as suas riquezas, que vão directamente para os cofres da coroa; deve-lhe, ainda, o troféu máximo, essa Ana Bolena, angulosa e felina, perseguida durante anos e finalmente instalada no lugar de rainha. Mas nem só de luxúria vive um rei. E um soberano como Henrique quer que a “bruxa” Bolena, que o enfeitiçou, cumpra a sua parte, ou seja, produza um filho varão e não uma sucessão de abortos, complicações e (apenas) mais uma rapariga, Elizabeth. Como se não bastassem os problemas com Mary, a filha de Catarina! Não tarda muito para que Cromwell se dê conta da distracção do seu monarca — ele que lhe antecipa os pensamentos — e do olhar que este pousa com frequência na diminuta figura de Jane Seymour, aia de Catarina e depois de Ana Bolena, figura familiar no círculo da corte, filha desse Sir John de Wolf Hall que tanto se destacou ao serviço de Henrique VII e do próprio Henrique VIII.
É altura de colocar a questão: o que distingue o relato desta velha história pela mão de Hilary Mantel, uma vez que a bibliografia relativa a este período da História inglesa é extensíssima? (“Ah, esses Tudor! Será que nunca nos cansamos das suas vidas atribuladas, das suas traições e vinganças, das sua intrigas e mortes violentas?”, desabafa Margaret Atwood no início da sua recensão no jornal The Guardian). Sim, como conseguiu Mantel acrescentar um punhado de novas emoções a esta popular e antiga tragédia?
Há, evidentemente, o ritmo da narrativa: Hilary Mantel não tem pressa. As palavras revolteiam e alongam-se em torno dos acontecimentos, à semelhança dos falcões de Cromwell, tal como o próprio vai urdindo as suas teias, no jogo complicado de agradar ao seu rei, de cumprir com as suas vontades — que tem de adivinhar e até de induzir — e de contornar dificuldades. Porque o esplendor do soberano, a luz que lança sobre os seus súbditos e sobre o seu reino pode apagar-se e transformar-se em negrume à mais pequena contrariedade. Henrique, o homem letrado, o poeta sensível, o ágil dançarino e valoroso amante, vai-se transformando, perante os nossos olhos, num homem cada vez mais velho, brutal, imprevisível e caprichoso. O humor de Henrique é volátil e o rei tanto ofusca com a sua alegria e bonomia quanto aterroriza com as suas cóleras. E Mantel é intensamente hábil na forma como descreve, com a mesma intensidade poderosa, os momentos mais líricos e idílicos e os mais sangrentos e violentos, à semelhança do pintor da Reforma, Hans Holbein, o Jovem, que soube como ninguém fixar os traços dos principais actores no palco desse dramático tempo.
O Livro Negro é uma obra agudamente visual, em que, para além das paisagens poderosas, dos detalhes do guarda-roupa, das casas e dos rostos, as cores e o seu significado invadem as páginas. Há, evidentemente, o vermelho do sangue, que contamina tudo e tinge o branco da neve que cobre ruas e estradas, permanentemente sulcadas pelos agentes e espiões de Cromwell, do rei, das rainhas, dos embaixadores. O amarelo solar do vestido sumptuoso de Ana Bolena, que ela enverga para mostrar a sua alegria no dia em que festeja a morte de Catarina, representa uma das muitas atitudes de desafio que ditarão o seu fim. Finalmente, o negro do céu de tempestade, das masmorras da Torre e do “livro” do título (onde estão assentes todas as tarefas e todos os movimentos no espaço fechado da corte) caracteriza a ausência de luz que assombra as mentes dos protagonistas, enredados nas suas danças mortíferas, enquanto o cerco se aperta em torno da rainha, como um tenaz punho de ferro manobrado pelos múltiplos, novos e velhos, inimigos dos Bolena. É claro que Cromwell, em sua própria defesa, pode gabar-se de ter contribuído para a paz no reino, esse estado tão difícil de alcançar quando inimigos domésticos e estrangeiros se encontram sempre à espreita, na expectativa de uma eventual fraqueza. Por isso, O Livro Negro é, também, um tratado sobre política, sobre o difícil jogo de xadrez das infindáveis concessões, ameaças e negociações necessárias para a estabilidade. Enquanto Cromwell se afadiga, se desdobra em múltiplos afazeres, conspira e manipula, a orgulhosa cabeça de Ana Bolena está cada vez mais próxima do cepo do carrasco e Jane Seymour caminha serenamente para o trono, à medida que Henrique vai ganhando peso e perdendo a saúde e a energia dos seus 20 anos, tornando-se cada vez mais brutal, irracional e sedento de sangue.
Nós, que já sabemos o desfecho da História, maravilhamo-nos perante a ironia de que os seus intervenientes nunca puderam desfrutar. A pequena, pudica e roliça Jane Seymour sentou-se no trono e deu ao rei um varão, mas morreu na sequência de complicações do parto, embora tenha sido a única a ter tido a honra de ser sepultada ao lado de Henrique. O seu filho, Eduardo VI, nunca chegou verdadeiramente a governar e foi a filha da “prostituta” Bolena que, afinal, se tornou uma das rainhas mais célebres de toda a História e certamente a mais poderosa de Inglaterra. Cromwell subiu tão alto que sofreu uma vertiginosa queda e nenhum dos seus famosos expedientes o salvaram de um destino inexorável. Os murmúrios e as confidências, as indiscrições e as intrigas que ele tão bem soube engendrar viraram-se contra ele, no final, e a narrativa de Mantel ilustra bem essa sensação de perder o controlo e de deslizar para a perdição quando a vontade se torna demasiado arbitrária e o poder absoluto corrompe sem remissão. Mas essa parte está ainda por contar no próximo e esperado The Mirror and the Light, que completará a trilogia. Quedemo-nos no final de O Livro Negro (Bring Up the Bodies no original) com o poderoso Secretário, quando ele pode ainda desfrutar o prazer de ver as cabeças dos seus principais inimigos a rolarem no cadafalso.