Morton Feldman (1926-87) é um compositor ímpar. Enquanto autor americano, inscreve-se na grande linha empirista e inovador desse novo “continente musical”, com Ives ou Varèse (um francês expatriado), o segundo tendo por ele sido particularmente considerado, mesmo como um “modelo” no gesto — mas enquanto a música de Varèse é uma explosão sonora, a de Feldman está no pólo oposto, extraordinariamente matizada e, por assim dizer, introspectiva, nos interstícios sonoros. Foi integrante da New York School, com John Cage, Earl Brown ou Cristian Wolff, mas a indeterminação e a aleatoriedade só o interessaram durante um período, na primeira parte dos anos 50. O que particularmente o motivou foram as possibilidades do próprio som, das texturas. Por certo que algumas referências musicais, além de Varèse, foram importantes na sua trajectória. É em especial curioso que Cage e Feldman se tenham conhecido numa audição da Sinfonia op.21 de Webern — enquanto os serialistas europeus (Boulez e Stockhausen sobretudo) tomaram aquele como um paradigma formal-construtivista, esses americanos descobriram na rarefacção weberniana a possibilidade do silêncio e da sua expansão ad infinitum. Contudo, e como é apontado nas notas deste disco, em especial nos anos 70, Feldman manifestou o seu particular interesse não só, surpreendentemente, pelas duas grandes figuras polares da música do século XX, Stravinsky e Schönberg (quando uma das suas características, como a de outros autores americanos, tinha sido a de não seguir as vias de um nem de outro, nem o neo-classicismo de Stravinsky nem o dodecafonismo de Schönberg), os quartetos de Beethoven e, sobretudo, Schubert, bem como das formas não-figurativas da tapeçaria oriental. Confuso? Nem tanto.
A referência maior de Morton Feldman não foi de ordem musical, mas sim pictórica, os seus amigos do chamado “expressionismo abstracto” como Jackson Pollock, Mark Rothko e Philip Guston. As suas obras tendem a ser color-fields como em Rothko. As dimensões e manchas cromáticas — e modulações das cores — das telas daqueles têm um evidente paralelismo nas dimensões das suas peças (de várias horas nalguns casos! — nenhum outro compositor escreveu obras de uma tal desmesurada dimensão temporal, sem interrupções), de uma aparente imobilidade e contudo com continuadas transformações tímbricas. Nesse sentido, a klangfarbenmelodie(melodia de cores sonoras) de Schönberg é afinal uma importante referência, como a complexidade formal dos últimos quartetos de Beethoven ou o “presente infinito” das peças de Schubert, seja na brevidade de um Impromptu ou na extensão do primeiro andamento da Sonata D. 960.
Umas das particularidades de Feldman é a de ter composto nos anos 70 um conjunto de obras para um instrumento e conjunto orquestral (embora também Chorus and Orchestra, I e II, e String Quartet and Orchestra), Piano and Orchestra, Flute and Orchestra, Oboe and Orchestra, Cello and Orchestra e, por fim, Violin and Orchestra. São “não concertos” como ele dizia, uma vez que o instrumento singular — e não propriamente solista — não tem esse tipo de relação-diálogo com a orquestra, emerge dela; não há “confronto” ou virtuosismo solista. A continuidade musical não é apenas marcadamente lenta, como há longas passagens que se diriam de “imobilidade”, sem contrastes de tempo e dinâmica — Feldman aliás dizia, noutra analogia pictórica, que as suas peças, muitas delas, eram “naturezas mortas sonoras”, como as extraordinárias obras-primas que são Rothko Chapell e Coptic Light.
Estes “não concertos” são obras que exigem uma imensa concentração de escuta, “compensada” pela percepção de uma paleta sonora extraordinariamente subtil. A interpretação de Carolin Widmann é de um lirismo e de um refinamento extremamente cativantes. Nesta que é dessa série de obras aquela que tem um dispositivo orquestral de maiores dimensões, Emilio Pomàrico mostra um domínio do idioma feldmaniano absolutamente assombroso — foi ele, recorde-se, que dirigiu, e de que maneira!, Neither, a “não ópera” de Beckett e Feldman em 2004, no São Carlos, na sequência disso tendo mesmo realizado uma edição anotada da obra publicada na Universal Edition.
Umas das grandes referências da discografia de Feldman é o duplo CD, dirigido por Hans Zender, na CPO, incluindo as obras com flauta, violoncelo, oboé e piano. Este novo disco é o complemento óbvio e bem-vindo. Para ouvir atentamente.