Protesto
Muita gente diferente, diferente no modo como recebeu a crise ou despertou para ela, apoiou a retórica justificativa da austeridade ou a rejeitou e provavelmente diverge nas soluções para sair da situação actual manifestou-se em conjunto, quase silenciosamente, num ambiente contido e entristecido.
Durante algum tempo as pessoas foram esmagadas por um discurso hegemónico que alimentava a criação de bodes expiatórios: para onde quer que se virassem, dentro e fora do país, só ouviam dizer que tinham vivido acima das suas possibilidades, que faziam parte dos preguiçosos da Europa do Sul, bafejados por muitos feriados para gozar o sol e a praia, que viviam à custa dos laboriosos países do Norte, para quem se tinha até inventado a acintosa designação de PIGS.
Nem toda a gente se revoltou então. Aplicando internamente a receita dos líderes europeus que dividia a Europa em bons e maus, virtuosos e culpados, inventavam-se entre nós uns malandros a quem apontar o dedo, primeiro o Governo anterior depois os funcionários públicos. O discurso irracional e fanático, nos seus ódios eleitos, aliviava a ansiedade e acalentava a esperança de que isto só acontecia aos outros, os gregos lá fora, ou os funcionários públicos cá dentro. Com o passar do tempo e os sucessivos falhanços das medidas e das promessas, os efeitos colaterais da bomba que atingiu o país foram-se espalhando, ao mesmo tempo que o discurso do Governo se dirigia ao povo no seu conjunto, qualificando-o de piegas, preguiçoso, ignorante das oportunidades que a crise gera, como o desemprego e a emigração, e dedicado a actividades económicas ultrapassadas que uma suposta selecção natural se encarrega de eliminar, como se o desaparecimento dessas actividades não dependesse de decisões tomadas por homens políticos, investidos de poder e conscientes das suas escolhas.
A sociedade foi aparando os golpes que lhe desferiam, conforme podia, na esperança de dias melhores. As gerações mais velhas acolheram os filhos de volta a casa, com os seus próprios filhos, depois de terem perdido as casas onde viviam, os jovens prescindiram de projectos de estudos superiores e oportunidades de emprego, as famílias cortaram nos consumos, as lojas fecharam, os restaurantes faliram. Agora partilhamos um destino comum, o de sermos geridos por uma espécie de força ocupante, que olha o país de fora, com estranheza, obedecendo à agenda europeia. Uma agenda que subverteu todos os princípios do projecto europeu ao substituir a coesão pela divisão, a solidariedade pela punição e o respeito pelas pessoas pelo desprezo profundo. A Europa, modelo de democracia e de bem-estar já não existe, pelo menos para alguns, os tais do Sul, e os povos sentem-se mais sós.
No dia 2 de Março as pessoas juntaram-se e mostraram o seu desejo de refundar a democracia ao evocar, num gesto cheio de significado e emoção, os símbolos da sua fundação, em 1974. Porque é no seio da democracia que se confrontam visões para o país, trocam argumentos e ideias e se criam oportunidades para que as pessoas dêem um rumo às suas vidas e sintam que controlam o seu próprio destino. É no seio da democracia que existe diversidade e surgem alternativas. Na ausência dela ficamos reduzidos a um mar de gente descontente.
A autora é psicóloga social e professora catedrática do ISCTE