“Chávez não morreu, multiplicou-se”
Venezuelanos continuam a vir de todo o país para se despedirem de Hugo Chávez. Ficam mais de 24 horas de pé, numa fila, para o ver dois ou três segundos.
Elsy Sierra viera com a irmã de Merida até Caracas. Viajara 18 horas, de camioneta. Saíra de casa às 20h de quarta-feira. Às 12h de sexta, quando começou a cerimónia fúnebre, com chefes de Estado, estava na fila, disposta a ficar “todo o tempo necessário” para despedir-se de “el comandante”.
Deixara a filha, “furiosa”, em casa da avó. A miúda, de nove anos, chorava desde que recebera a notícia da morte do Presidente da República, na terça-feira à tarde. “Por que Deus não fez um milagre?”, perguntava, agarrada à mãe. A secretária, de 34 anos, também precisava de consolo. “Isso foi um golpe muito duro. Perdi o meu pai num acidente, há uns anos, e foi igual.”
Os meios de comunicação social desdobram-se em análises, tentando perceber como é que Hugo Chávez se despede, ao fim de 14 anos de Governo, com 68% de popularidade. Analistas como Luis Vicente León discorrem sobre recursos, controlo de recursos, programas sociais, expectativas criadas entre os mais pobres, explicando: não é que as pessoas não percebam os seus erros ou as suas limitações, é que os seus erros e as suas limitações o tornam “igual” aos outros.
“Ele tinha uma ligação muito afectuosa com o povo”, diz Elsy. “Quando falava com alguém, perguntava-lhe como se sentia, como estava a sua família, de que precisava. Foi o único Presidente, em toda a história da Venezuela, que se preocupou com os mais pobres, com os de baixo.”
O fervor é quase religioso. Dos armários saíram T-shirts, chapéus, lenços, fitas de alguma das 15 campanhas eleitorais que estão para trás. Uma frase nova remete para o espírito do momento: “Yo soy Chávez”.
“Ele morreu por nós”
Renzo Mendoza, de 30 anos, tinha um chapéu dos novos e uma tradução possível. “Chávez não morreu – multiplicou-se.” “Chávez vive em cada um, mas dói muito que tenha morrido fisicamente”, acrescentava uma amiga, sentada na grade, abrindo muito os olhos, para segurar as lágrimas.
Maricela, a amiga, sempre desejara tocar-lhe, como via fazer muitos. Nunca conseguira. Tinha ali a derradeira oportunidade. Findos os sete dias de exposição extra, anunciados por Nicolás Maduro, juramentado nesta sexta-feira como Presidente interino, será embalsamado e colocado numa urna de cristal.
Umas centenas de metros atrás, estava uma miúda de 14 anos que lhe tocou, no encerramento da última campanha presidencial, em Outubro. Chovia. “Praticamente, morreu por nós”, defendia a mãe. Se ele tivesse descansado, em vez de fazer campanha, talvez não tivesse morrido, mas ele não queria deixar o seu povo sozinho.” A filha retoma a palavra: “O povo ia acompanhá-lo, mesmo sem campanha. Eu já tinha decidido votar por ele aos 18 anos. Agora, votarei por Maduro, como ele pediu.”
A família sente ter muito para agradecer. A mãe, Joana Bettencourt, não poupa palavras. Eleva a voz para as pronunciar, como se isso lhe desse mais valor: “Eu amo o meu Presidente. Graças ao meu Presidente, tenho uma casa digna. Se não fosse o meu Presidente, a minha filha mais nova não estava viva.”
Viviam numa barraca, numa encosta. A menina, de nove anos, nasceu sem recto. Um dia, num comício, a mãe entregou uma carta a Diosdado Cabello, actual presidente da Assembleia Nacional. Foi operada. A mãe agradece isso. E a escola pública, que as crianças frequentam. E a acção social, que a dispensa de comprar material escolar. E os supermercados com comida subsidiada, que lhe permitem ter uma alimentação variada. No ano passado, recebeu um par de chaves.
À frente delas, a atleta Andreina Molero: “Esteja onde estiver, desejo-lhe descanso. Ele não descansava. Trabalhava dia e noite por nós. Se ele estivesse aqui hoje, faria um discurso a desejar-nos feliz dia da mulher. Ele lembrava-se dos mínimos detalhes. A forma de seguir o seu projecto é votar em Maduro.”
Fala-se muito de despertar de consciências, de participação. De um momento para outro alguém pode sacar um exemplar da constituição do bolso, como faz o velho soldado Raul Valdorey, de 60 anos. Ou a dar uma lição de história, como faz o mestre-de-obras Carlos Croquer, de 43.
Qualquer um parecia capaz de explicar que não fora por acaso que o corpo fora levado para ali. Chávez entrou na Academia Militar aos 17 anos. Foi ali, enquanto estudante de Ciências Militares, que leu Bolívar, Napoleão, Mao Tsé-Tung, Clausewitz. E foi ali que, já como instrutor, formou o movimento que haveria de tentar derrubar o Governo de Carlos Andrés Pérez, a 4 de Fevereiro de 1992. A sua primeira aparição pública aconteceu nesse ano. Seis anos depois, era eleito pela primeira vez.
25 horas na fila
O seu projecto político estava em curso. “Ele deixou ferramentas para a revolução avançar”, acredita Ronald Rios, 35 anos, trabalhador social no Estado Miranda. “Com Chávez no coração de cada um de nós, isto é um processo irreversível.
Seguirá com Maduro.” Ninguém contestava o nome. Era como se fosse impossível contestar a escolha de Chávez, como se fosse impossível contestar a escolha de um morto. “A morte de Chávez só fortalece a revolução. Vamos oferecer-lhe dez milhões de votos.”
Já dobrara a noite na fila. Se tivesse de voltar a dobrar a noite fá-lo-ia.
Quem saía da Academia Militar trazia emoção no rosto. José Ortega, estudante de sociologia, de 20 anos, até se sentou no chão. Esteve 25 horas numa fila quilométrica e as irmãs ainda estavam para lá. Só viu Hugo Chávez um ou dois segundos. “Valeu a pena. Era o nosso líder máximo. Merece.”
Lá em casa, a dor tomou conta de todos. Quem podia vir, veio. Saiu do estado Portuguesa às 23h de quarta-feira. Por volta das 4h, estava a chegar a Caracas com as irmãs e umas amigas. Meteu-se na fila às 6h. Só saía para ir a uma das casas de banho portáteis montadas pelos militares, que nesta sexta-feira já estavam “colapsadas”. Saía dali com uma imagem na cabeça: “Chávez está deitado, fardado, com as suas condecorações ao peito, como comandante que era e que continuará a ser para nós.” E com a sensação de estar a viver História.
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