Saber adaptar-se, saber durar

Os sucessos diplomáticos alcançados por Salazar - sobretudo a muito celebrada neutralidade do país na Segunda Guerra Mundial - foram uma componente essencial da lenda erguida em seu torno. O à-vontade que rapidamente evidenciou na condução dessa actividade, porém, não deixa de ter os seus aspectos desconcertantes. O senso comum diz-nos que uma certa dose de cosmopolitismo deverá ser importante, se não mesmo indispensável, para um governante singrar no mundo da política internacional. Ora, se havia algo que Salazar manifestamente não possuía era esse atributo (o que não constituiu caso único no panorama dos estadistas do seu tempo). Embora interagisse sem grande problema com figuras de extracção mais elitista, a sua maneira de estar e de ver o mundo eram tributárias de uma mentalidade fechada e provinciana, para não dizer tacanha.

Na sua longa carreira política, Salazar efectuou apenas um punhado de deslocações a cidades espanholas, nunca muito distantes da fronteira (Sevilha, Ciudad Rodrigo, Mérida), para se avistar, sempre brevemente, com o general Francisco Franco. Antes disso, tinha realizado uma única viagem além-Pirinéus, em 1927, para conhecer Paris e a Bélgica, a poucos meses de assumir a pasta das Finanças. O seu gosto pela reclusão tornou-se lendário, embora não deixasse de marcar presença em banquetes e recepções diplomáticas, quando as circunstâncias o exigiam (e sempre fazendo questão de manter a casaca limpa de insígnias ou condecorações).

E no entanto nada disto impediu Salazar de desenvolver uma forte apetência pelos assuntos de política internacional, uma vez consolidadas as bases domésticas do seu poder. Isso aconteceu por volta de meados dos anos 1930, quando os desenvolvimentos da cena internacional, e em especial a situação em Espanha, passaram a exigir a sua atenção permanente. Em 1936, acabaria mesmo por chamar a si a direcção da pasta dos Negócios Estrangeiros, a qual só viria a abandonar 11 anos mais tarde. Aliás, conforme as suas biografias nos indicam, o envolvimento de Salazar na política externa manter-se-ia intenso bem para lá do término do segundo conflito mundial. Em finais dos anos 40, as vicissitudes da Guerra Fria exigiram-lhe um cuidado constante, o mesmo sucedendo em relação à disputa com a União Indiana, na década seguinte. Nos seus últimos anos em São Bento, a guerra colonial e toda a sua complexa envolvência internacional absorveram as suas energias quase por inteiro. Não obstante alguma retórica isolacionista, jamais descurou a inserção internacional do seu regime, através das alianças com os poderes dominantes no Atlântico e da participação em organismos multilaterais (relativamente aos quais mantinha uma desconfiança metódica).

A história de como Salazar, e os seus mais destacados servidores diplomáticos, lidaram com os acontecimentos vertiginosos das décadas de 1930 e 1940, é o tema fundamental do livro de estreia de Bernardo Futscher Pereira, ele próprio um funcionário de carreira do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). De forma honesta, o autor previne os leitores para não esperarem grandes novidades em termos factuais, ou até interpretativos. A sua obra apresenta-se como uma “visão de conjunto”, uma “crónica das múltiplas crises e desafios com que Portugal se viu confrontado e das respostas que o regime lhes deu, essencialmente no plano diplomático” (p. 9). Não é, pois, uma investigação alicerçada em fontes primárias inéditas (tirando o espólio privado de Luís Teixeira de Sampaio, apenas pontualmente referido), nem traz a lume elementos que lancem uma nova luz sobre factos já conhecidos. Dizer isto, porém, não significa desmerecer o esforço do autor. Desde logo, porque estamos perante uma síntese que combina muitíssimo bem os pontos de vista de quem a produziu com as perspectivas oferecidas pela literatura histórica relativa à política externa portuguesa neste período. Bernardo Futscher Pereira alia ao sólido conhecimento das principais fontes relevantes (as impressas, mas não só) a sua vasta experiência enquanto diplomata e conselheiro político de vários decisores nacionais. As suas apreciações acerca das estratégias negociais e dos processos diplomáticos têm, talvez por isso, um aspecto certeiro, lapidar mesmo - para o qual contribui também o estilo conciso e elegante do autor.

Apesar da atenção ao detalhe simbólico, a profundidade analítica é assinalável e o leitor nunca perde a visão dos eixos estratégicos que norteavam a diplomacia de Salazar. Sem enjeitar a dívida que os estudiosos destes assuntos têm para com Franco Nogueira e a sua monumental biografia do ditador (publicada na década de 1980, em seis volumes), afasta-se, contudo, do registo apologético e nacionalista que marcava essa obra. Com grande isenção, Futscher Pereira procura acima de tudo compreender a racionalidade dos protagonistas, o sentido da sua actuação, os critérios que tinham em mente para medir êxitos e fracassos. Sem descurar a relevância crítica dos factores exógenos, não deixa de destacar as várias apostas ganhas pela visão e pela teimosia de Salazar. O seu empenho na vitória de Franco na guerra de Espanha, uma hábil gestão dos equilíbrios no segundo conflito mundial, e a adaptação pragmática à liderança americana no pós-guerra permitiram-lhe assegurar os grandes desígnios da sua política externa: a independência nacional, a integridade do império, e, claro está, a sobrevivência do regime. Mesmo quando exasperava os seus colaboradores com certos expedientes negociais, o desfecho das disputas foi-lhe geralmente favorável - a este respeito, a sua táctica de deixar esticar a corda até ao ponto máximo de tensão, com vista a obter o máximo possível de dividendos, tornar-se-ia um clássico. Embora isso não fizesse dele um interlocutor fácil, a verdade é que ganhou o respeito, e até a admiração, de praticamente todos quantos negociaram directamente com ele.

O livro aborda também facetas da política externa salazarista que ainda hoje suscitam alguma controvérsia, fazendo-o sempre de forma ponderada. Um dos casos incontornáveis é o da actuação dos diplomatas portugueses, e das instruções de Salazar, relativamente aos judeus perseguidos na Segunda Guerra Mundial - tema que até há bem pouco tempo estava longe de reunir o consenso de figuras ligadas ao MNE. O autor procura fazer o enquadramento rigoroso desses acontecimentos, e de outros que se produziram numa fase mais adiantada da guerra, e encontrar a explicação possível para a rigidez e a severidade reveladas por Salazar. A cultura autoritária do regime e o seu apego a procedimentos vistos como essenciais para manter a disciplina dos servidores do Estado terão sido um factor decisivo. Mas fica também claro até que ponto figuras como Salazar e Teixeira de Sampaio, o influente secretário-geral do MNE, se revelaram incapazes de compreender a escala e a gravidade dos crimes cometidos pela Alemanha nazi. Apesar de disporem de informação suficiente para tomarem consciência do carácter excepcional do totalitarismo hitleriano, parecem ter preferido continuar a acreditar que o problema alemão era, quanto muito, o problema de nacionalismo “exaltado”, logo algo passível de ser corrigido.

Apesar dos estudos de que dispomos não apontarem para uma orientação anti-semita dos responsáveis do Estado Novo, pelo menos equivalente à de outras elites autoritárias da época, é difícil escapar à conclusão de que Salazar estaria sobretudo preocupado em se poupar a escolhas difíceis em matéria de auxílio aos judeus. Como escreve o autor: “Simplificando, fica a impressão de que a atitude geral do regime em relação ao Holocausto era de que Portugal não tinha - nem queria ter - nada a ver com esses acontecimentos. A atitude de quem, em suma, perante um crime monstruoso que se desenrola à sua frente, prefere desviar o olhar e fingir que não vê” (p. 418).

Que no fim da guerra Salazar tenha sido capaz de superar as adversidades que se colocavam a um regime com as conotações ideológicas do Estado Novo atesta, uma vez mais, a importância dos factores externos (o interesse das potências ocidentais em contarem com a sua colaboração, num quadro de crescente rivalidade com a URSS); mas seria errado não reconhecer o seu consumado talento para realizar os ajustamentos indispensáveis à aceitação de Portugal como um parceiro válido do “Ocidente”. Essa manobra de adaptação, e toda a sua envolvência estratégica, é muito bem analisada nos últimos capítulos, fundamentalmente dedicados à aproximação de Portugal aos Estados Unidos no domínio da segurança e defesa, e nos quais ressalta, uma vez mais, o dom do autor para recriar a complexidade e subtileza dos processos negociais e das tomadas de decisão.

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