Não sei se Bigelow foi roubada mas Tarantino foi

Que seja maligna, que seja maligna a noite de 24 de Fevereiro. E uma vez que não vai ser Django Libertado o Óscar do Melhor Filme, que seja Amor.

Em vésperas do anúncio das nomeações, isso não era adquirido. Mas não levaram Bigelow ou Tarantino à categoria de melhor realizador. E no total de nomeações, cinco para cada um, ficam aquém dos mais nomeados, Lincoln, de Steven Spielberg (12), e A Vida de Pi, de Ang Lee (11). Costuma ser assim: a vantagem para o que é benigno e inofensivo.

Mas não sei se Kathryn Bigelow foi roubada. Quentin Tarantino foi.

Penso na forma como Django Libertado se deixa consumir, por se meter ao barulho com fantasmas americanos – escravatura, Norte e Sul, racismo, a n-word e até E Tudo o Vento Levou... E como, disfarçando-se de charada, mantém do princípio ao fim esse contacto com o que afinal não estava morto e ameaça irromper vivo. Já Lincoln é a História emoldurada. É uma forma cabisbaixa de Spielberg, que sempre se intimidou perante a História (olhem para Amistad), se medir com o mito. E o mito pode ser, por exemplo, o Young Mr. Lincoln, de John Ford (1939), que no final entregava o jovem Abraham à tempestade da História. Spielberg perde a oportunidade de dançar ao som das ressonâncias que essa ligação entre o novo e o velho Lincoln poderiam desencadear. Tendo sido capaz de acreditar em extraterrestres, falta-lhe capacidade de crer (questionar) no humano.

Tarantino fê-lo. Depois de se (nos) divertir com uma História alternativa da II Guerra (Sacanas sem Lei), filme que nunca tirava o espectador do conforto porque esses “bons” e esses “maus” são património estabilizado, desata a abrir feridas. A posição do espectador (americano) é mais instável. O sempre dogmático Spike Lee, por exemplo, não gostou.

E não sei se Kathryn Bigelow foi roubada porque ela não está ali. Quer dizer: só há meia hora dela em 00h30: A Hora Negra, o final, o ataque ao complexo onde se escondia Osama Bin Laden. Reconhece-se nesse fogacho a saturação que transforma, ou transformava nos filmes do passado, as personagens de Bigelow em máquinas alimentadas a emoções, coisa nada benigna. Mas é um fogacho. O resto está ocupado pelo docudrama, e só resta saber se isso é uma inevitabilidade desta associação da cineasta com o argumentista Mark Boal. A polémica que tem ardido à volta do filme (um dos pontos altos foi, nessa consideração de 00h30: A Hora Negra como propaganda de “regime”, a narcísica e operática carta aberta de Naomi Woolf no Guardian a comparar Bigelow a Leni Riefenstahl) talvez nasça, fundamentalmente, da estranha neutralidade dramática deste objecto. Não é bem um filme, é uma exposição. Não há uma personagem que interesse. Pior: não há uma única personagem, nem Maya (Jessica Chastain, nomeada), que se interesse. Interessa mais Argo, de Ben Affleck, mesmo se parece o pequeno David frente ao gigante Golias, pela sua abordagem lúdica (é uma miniatura, como as que John Badham montou nos anos 80) à História americana. Affleck, coincidência ou não, também não foi nomeado como realizador.

Que seja maligna, que seja maligna a noite de 24 de Fevereiro. E uma vez que não vai ser Django Libertado o Óscar do Melhor Filme, que seja Amor, de Michael Haneke. Jean-Louis Trintignant, sim, foi roubado.
 
 

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