Uma breve ilusão de juventude

Não é todos os dias que são publicadas memorias de ex-militantes maoístas sobre os anos da transição democrática portuguesa. Para a geração de 60 chegou a altura de as escrever, antes que seja tarde, mas a geração de 70 ainda não sofre esta pressão das leis da vida. Esta é mais uma razão para saudar a obra de José Manuel Fernandes, ainda por cima porque Era uma vez... A revolução é também um depoimento e um balanço sobre um percurso ideológico. No seu caso, da extrema esquerda para a direita liberal, com uma breve passagem pela esquerda desta última. Muitos dirão que é um percurso comum, mas talvez se enganem nessa intuição apressada.

Para vários segmentos das elites políticas e intelectuais, sobretudo para os que, ainda que caminhando para o centro, continuaram na mesma área do espectro esquerda-direita, é muitas vezes com um sorriso discreto que se explica o “ideologismo” dos que tiveram o mesmo percurso de José Manuel Fernandes: eles mudaram, mas a formatação radical ficou. Eram dogmáticos e dogmáticos ficaram. É aliás com algum picante - muitas vezes inocente, mas na maior parte dos casos vagamente malandro - que se redescobre mais um politico de direita ou quadro destacado da elite universitária, económica ou financeira com um passado “esquerdista”. Ainda há uns anos o autor destas linhas tentou o seu melhor discurso académico para explicar a jornalistas da BBC o passado maoísta do actual Presidente da Comissão Europeia; há algumas semanas, quando a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa subiu nos rankings de qualidade, logo se descobriu que o seu actual director é um ex-maoísta do MRPP.

Há alguns estereótipos sobre estes percursos que vale a pena eliminar desde já, a começar pela sua aparente tipicidade. De facto, para cada José Manuel Fernandes há um Fernando Rosas, um Lucas Pires, ou um Jaime Nogueira Pinto, para dar apenas alguns exemplos dos que ficaram em áreas diferentes (mas do mesmo espectro), ainda que partindo dos extremos do activismo político estudantil. Apesar de as excepções serem importantes e, às vezes, mais interessantes, a maioria dos ex-activistas de extrema esquerda estudantil não atravessou a escala esquerda-direita e foram ainda menos os que partiram do outro lado. Contam-se pelos dedos os ex-activistas estudantis de extrema direita dos anos 60 e 70 que fizeram o percurso inverso.

Para além dos historiadores, que utilizarão a obra de José Manuel Fernandes como fonte para o estudo dos movimentos marxistas-leninistas em Portugal, dos seu valores, da sua estrutura organizativa, ou das suas dissensões ideológicas nos anos 70, o que é que o publico ganha com estas memorias? Salvo melhor opinião, muito. Desde logo porque este livro está bem escrito e é produto de uma investigação apurada, por trás da sua aparente simplicidade memorialista. Ainda que ligeiramente mais velho e com escasso contacto militante com José Manuel Fernandes, o autor destas linhas, que navegou nas mesmas águas um pouco antes, é disso testemunho. Mas a questão mais interessante que a obra levanta é de grande importância: o que leva um jovem da classe média educada dos anos 60, que aliás não provinha de uma cultura politica de oposição ao Salazarismo, a entrar numa das pequenas organizações clandestinas da extrema esquerda M-L? José Manuel Fernandes tenta dar a sua resposta a esta pergunta difícil. Neste caso, tratava-se da União dos Estudantes Comunistas (ML), organização estudantil do chamado PCP (ml), parte do qual, após uma cisão, e já depois do 25 de Abril, iria fundir-se no PCP (R) e na sua organização de frente, a UDP.

Entramos assim na velha questão das motivações para a chegada ao activismo extremista de pequenos, mas importantes, segmentos das elites. As ciências sociais têm por vezes alguma dificuldade de análise destes percursos, pela armadilha racionalista que tende sempre a subestimar a ideologia perante a lógica dos interesses individuais. No caso de José Manuel Fernandes, a vivência em ditadura, a morte de Ribeiro Santos, jovem estudante assassinado pela PIDE em 1972, e o contacto com o MAEESL, o correspondente no ensino secundário do movimento associativo universitário, foram os grandes móbiles do alistamento. Foi através deste último movimento que se foi aproximando da clandestina UEC (M-L). Mas estes factores por si não chegam para uma explicação mais global. Como o próprio salienta, o grande universal foi o que Joseph Schumpeter chamou a promessa “do paraíso sobre a terra”. Tal como outros sistemas ideológicos e religiosos, o marxismo oferecia “um sistema de fins últimos que dão um sentido à vida”. Se o associarmos à juventude educada, já fomos longe na explicação.

Nos capítulos seguintes acompanhamos a breve “profissionalização politica” deste jovem durante a transição. Esta deu-lhe, caso raro em comparação, um cheiro de revolução que muitos outros processos de democratização desconheceram. De facto, entre soldados e golpes, quartéis politizados, comissões de moradores e reforma agrária, o caso português constituiu uma “janela de oportunidade” para que estes jovens activistas pusessem “a mão na massa” da mudança politica. José Manuel Fernandes traça com grande vivacidade a sua passagem por este pequeno turbilhão de 1974-75 e o seu livro é também um testemunho muito interessante sobre o ângulo a partir do qual uma pequena organização de extrema esquerda viveu e pensou as “pequenas-grandes” etapas do chamado PREC, do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975. Entre debates políticos e processos de depuração internos ou avaliações morais, o seu relato da vida de uma “comunidade militante” desta variante comunista é talvez o aspecto mais interessante destas memorias.

Alguns episódios desta história são aliás ainda relativamente desconhecidos - caso, por exemplo, do papel importante na unificação de vários grupos M-L que dão origem ao PCP (r) e à UDP desempenhado por um dirigente do Partido Comunista do Brasil, exilado na Europa, Diógenes Arruda, um dos homens a quem Jorge Amado dedicou o seu romance Os Subterrâneos da Liberdade. As memórias de José Manuel Fernandes ilustram aliás que esta variante do maoísmo teve uma marca neo-estalinista bem mais forte do que, por exemplo, o MRPP, símbolo extremo do maoísmo em Portugal. Em grande parte, a influência deste velho dirigente comunista foi importante para o relativo sucesso politico e eleitoral do PCP (r) e da sua UDP.

Depois, claro, vem a ruptura com “a tola e perigosa ilusão comunista” e a “troca do socialismo pelo liberalismo”, a que José Manuel Fernandes acrescenta o papel discreto de alguma componente religiosa. Mas este é apenas um breve epílogo, pois o que vai seguramente deliciar o leitor é a excelente descrição de uma breve união de facto com essa “tola ilusão” de juventude.

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