"Amor", de Michael Haneke, não é um “filme inesquecível”
Michael Haneke oferece-nos imagens seguidas e pausadas que são, efectivamente, a representação mais possível do ritmo de um casal de 80 anos
“Amor” é uma representação fiel do quotidiano decadente de Georges e Anne, um casal octagenário, que luta contra a demência da segunda. O filme sustenta-se no seu dia-a-dia e cabe-nos a nós ver as mudanças deles ao longo do tempo.
Inicialmente, apenas no intuito de apresentar uma imagem realista da vida do casal, Michael Haneke oferece-nos imagens seguidas e pausadas que são, efectivamente, a representação mais possível do ritmo de um casal de 80 anos. E não imagens que são apenas um "corta e cola" de batidas de segundo, seleccionadas para que, em conjunto, pareçam uma sequência de acontecimentos.
A.O.Scott, do "The New York Times", diz que este filme “mostra, como que pela primeira vez, como os mais tristes e intratáveis factos da vida podem ser transformados em arte”. É uma afirmação absolutamente correcta e que se refere a momentos brilhantes do filme, não obrigatoriamente a nível de representação mas, sobretudo, a nível de encaixe da história e das situações escolhidas como ideais para transmitir uma ou outra mensagem.
Numa das cenas, Georges, sentado à mesa com a mulher, conta-lhe um episódio da sua vida, em que está a descrever a outra pessoa um filme que vira. Diz: “Não me lembro do filme, mas lembro-me do sentimento. Tinha vergonha de chorar e, ao contar, os sentimentos, as lágrimas voltavam talvez ainda mais fortes do que ao ver o filme.”
Este momento, tão singular e, simultaneamente banal, é uma escolha cuidada que mostra o trabalho de uma magnitude avassaladora que Michael Haneke tem com “Amor”. Esta sensação que Georges descreve tão simplesmente é, cremos, aquela que os espectadores deste filme terão no futuro. Um filme que não contém história "per se", mas cujo sentimento perdura e será cada vez mais forte e lancinante quanto mais tarde nos recordarmos dele.
Finalmente, e ainda que não haja dúvida da qualidade do trabalho dos dois actores principais, um factor impossível de ignorar são as componentes que constroem uma rede à volta desta história e que são essenciais ao espectador.
Apartamento, laboratório, mausoléu
Ana Margarida de Carvalho observa: “O filme passa-se num elegante apartamento parisiense, (…) o filme passa-se num laboratório, (…) o filme passa-se num mausoléu (…)”. O espaço em que a história se passa é uma dessas componentes e passa a ser, ao longo do filme, como uma casa para o espectador, que procura aprender, também ele, a movimentar-se lá dentro e a compreender as suas rotinas.
Para além do apartamento, a filha do casal e as duas enfermeiras são, também, elementos marcantes. A filha é-o, pois cria um laço de identificação com o espectador, e uma das enfermeiras também, pois cria um pólo de ódio para onde o espectador direcciona um certo enervamento que o filme gera no estômago. Infelizmente, a participação de Rita Blanco passa tão despercebida como é irrelevante.
Na longa descida de Georges e Anne pelo caminho das limitações da doença, da vergonha de ser tratada como uma incapacitada, do orgulho e, também, do compromisso, da dedicação, do altruísmo e, obviamente, do amor, há definitivamente, um travo amargo. Ainda assim, por muito que duas ou três cenas sejam, efectivamente marcantes, “Amor” não deixa o cunho de “filme inesquecível”.
“Amor” recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes e o prémio do European Film Award.