Virá o dia, se e quando ela passar, em que falaremos dos “filmes da crise”, desta crise, tal como hoje identificamos bem, por exemplo nos anos 30, o cinema da Grande Depressão ou, deste lado do mar, o cinema do coma profundo em que entraram as democracias europeias. Agora ainda seria prematuro - até porque a depressão tem muito para crescer e o coma ainda pouco se distingue de uma sesta; mas lá que há filmes que ligam bem com a crise, com esta crise, é um facto. “Uma Vida Melhor”, por exemplo. O melodrama familiar - ainda que esculpido no mármore, bem bruto, de um realismo social impecavelmente contemporâneo - não é o modelo narrativo que Kahn trabalha melhor. Preferimos-lhe a futilidade brilhante de algo como Sinais Vermelhos (2004), exercício hitchcockiano (e portanto, onírico) sobre a angústia, o medo e a culpa. Não impede que, mesmo trabalhando a velha receita realista francesa de forma porventura demasiado convencional, algo indecisa, e certamente não muito incisiva, Uma Vida Melhor retine de justeza e, não a desconsideremos entre as virtudes, alguma “urgência”. É como um espelho que nos devolve uma imagem que vamos conhecendo cada vez melhor: a pobreza e a sua (re-)aprendizagem, os conflitos morais inerentes (a tentação da desonestidade), a machadada nos laços humanos (pode-se amar se deixa de haver comida na mesa?), os comércios em volta (mesmo o mais pobre dos pobres pode ser uma “renda” para alguém).
Nada de novo, dirão, a pobreza não é uma coisa moderna. Mas a sua circunstância é-o, e é aqui que as incidências de Uma Vida Melhor se tornam curiosas. O protagonista (Guillaume Canet) é um cozinheiro ambicioso, ou nem muito ambicioso, talvez sonhe apenas com “uma vida melhor”. Com a namorada (Leila Bekhti, que conhecemos do Um Profeta de Audiard), decide-se a montar um restaurante. No banco dão-lhe todo o crédito e palmadinhas nas costas - afinal de contas está ali a encarnação do mais moderno fetiche tecnocrata, um “jovem empreendedor”. Depois a coisa não descola, por azares à mistura com asneiras. O casal fica sem restaurante e com uma dívida colossal. O fetiche torna-se boneco de vudu, o “jovem empreendedor” volve-se na grande abjecção contemporânea, apenas alguém que se endividou “acima das suas possibilidades”. Merece todas as agulhas que lhe espetem, e a banca, as finanças, os afins, de agulhas têm um arsenal. À vez, os protagonistas seguirão um conselho em voga: emigram. O Québec, a neuf France em vez da velha França, tornada inabitável. Não encontram o paraíso, bem pelo contrário. Mas dá para sonhar, se não com uma vida melhor, com a sua possibilidade. Lição de vida, claro. Que é melhor do que a lição de cinema de Cédric Kahn. Mas, por uma vez, parece uma boa razão para recomendar um filme.