“Os Despojos do Dia” (“The Remains of the Day”), de James Ivory (1993)

Mr. Stevens é, seguramente, o mordomo perfeito, isto é, aquele que, estando presente, torna a sala mais vazia, desaparecendo nos intervalos de ser útil como só ele sabe ser

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Qualquer grande obra é feita de níveis de leitura correspondentes à profundidade a que for capaz de mergulhar cada observador no seu cuidado, sabedoria e sensibilidade. Penso ser “Os Despojos do Dia” um desses casos em que é possível perfurar a superfície do entretenimento para pesquisar outros conteúdos.

Para isso, não basta estar atento aos pormenores de representação, aos movimentos de câmara, aos enquadramentos, à iluminação, já que os diálogos, a fotografia, a música, a direcção artística e um tom geral de elegância se impõem por si mesmos. É preciso algo mais para recolher as impressões que, eventualmente, nos farão sentir aproximadamente realidades tão diversas como a vida de uma grande casa, uma certa deontologia do servir, a dedicação a ponto de auto-anulação, os erros engendrados no sentido da honra, na amizade, nas boas intenções, a perdição do arrependimento sem redenção e, em tudo, o sentido da honra.

É preciso algo mais para recolher estas impressões: é preciso ser impressionável. Mesmo que possam assomar-nos ao espírito exercícios conhecidos de representação dessa interdependência antagónica de senhores e servos de casas importantes britânicas em época de auge de cada um dos seus papéis mais característicos, tais como a série de TV “A Família Bellamy” (1971-1975), a longa-metragem “Gosford Park” (2001) ou a série “Downton Abbey” (iniciada em 2010 e actualmente na sua terceira temporada), não devemos reduzir “Os Despojos do Dia” a um género ou a um resumo de um género.

Anthony Hopkins no papel do mordomo Mr. Stevens, Emma Thompson no papel da governanta Miss Kenton, James Fox no de Lorde Darlington, a adaptação feita por Ruth Prawer Jhabvala do romance de Kazuo Ishiguro e a realização de James Ivory são uma combinação de refinamentos que resultam num conjunto de complexidades e sentidos muito próximo da vida real ou talvez o mais próximo que estaremos do seu entendimento.

Mr. Stevens é, seguramente, o mordomo perfeito, isto é, aquele que, estando presente, torna a sala mais vazia, desaparecendo nos intervalos de ser útil como só ele sabe ser. Anthony Hopkins, por seu lado, convence-me de que só ele consegue ser este Mr. Stevens, o mordomo tão perfeito na sua qualidade de não ser senão um instrumento de serviço que não encontra em si os meios de desligar a aparência e estender uma mão que toque, mesmo que ao de leve, no amor que descobriu em Miss Kenton. Miss Kenton, que tinha começado por se afirmar no desafio a Mr. Stevens, finalmente vencida por questões de género, de época, aceita condenar-se a uma pena comum de casamento ditado pela desilusão, até ao reencontro, já divorciada, com aquele com quem gostaria de ter-se casado vinte anos antes. Esse reencontro e o que dele resulta são lenha para a fogueira destas considerações.

Lorde Darlington, amigo dos seus amigos alemães e pretendente à restituição da dignidade da Alemanha, seriamente afectada pelas disposições do Tratado de Versalhes, promove encontros internacionais em Darlington Hall em que joga a sua reputação a par da sua ingenuidade política, enquanto, num deles, o delegado francês trata as bolhas dos pés que o afligem devido a sapatos demasiado justos (“por vaidade”) e, noutro, o embaixador alemão dá indicações ao seu secretário para registar as obras de arte mais dignas de nota de Darlington Hall, para serem apreendidas após a invasão da Grã-Bretanha pelas tropas de Hitler. Há vários outros apontamentos impressionantes, sobre dever, dedicação, amizade, amor e morte, para impressionáveis criteriosos.

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