“Os Melhores Anos das Nossas Vidas”, de William Wyler (1946)

Não se pode esquecer a ousadia do realizador em dar um papel importante a um não-actor, como era Harold Russell à data da sua contratação, um instrutor do Exército que perdeu realmente as duas mãos a manejar explosivos

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Terminado o Inferno dos que combateram na Segunda Guerra Mundial, qualquer coisa podia passar por Paraíso, a começar pelo local onde a vida adulta tinha ficado para trás, interrompida a meio ou no princípio. Por exemplo, Boone, uma simbólica cidade pequena do interior dos EUA onde Al, um sargento do Exército (Fredric March), Fred, um capitão da Força Aérea (Dana Andrews), e Homer, um marinheiro (Harold Russell), moravam, embora não se conhecessem, mesmo tendo lutado na mesma guerra. Só se conhecem ao partilhar uma boleia no bombardeiro que os leva para casa, mas durante a viagem tornam-se “amigos da tropa”. Mais do que pela duração da viagem, a ligação entre os três homens estabelece-se através de Homer, pela não-rendição deste à perda das duas mãos numa explosão e pelo apoio dos outros dois perante a sua maior dúvida: a reacção da noiva, dos pais, da irmã pequena, àqueles ganchos.

Mas há mais ganchos na história, igualmente assustadores, à medida que se vão tornando evidentes para os espectadores os crescentes embaraços de Al e Fred em continuar as suas histórias a partir do ponto em que as tinham deixado. Essa incapacidade é niveladora dos três homens, provenientes de diferentes meios sociais, e assim se prolonga o interesse pelas restantes personagens do trio, quando tudo poderia ter girado apenas em volta de Homer e do seu problema gritante, produzindo algo assim como “O Meu Pé Esquerdo”, de Jim Sheridan (1989), com Daniel Day-Lewis.

É claro que não se pode esquecer a ousadia do realizador em dar um papel importante a um não-actor, como era Harold Russell à data da sua contratação, um instrutor do Exército que perdeu realmente as duas mãos não em combate, mas a manejar explosivos durante um filme didáctico militar. Mais ainda, é impossível esquecer a enorme coragem de Russell em se expor tão completamente como na cena em que convida a noiva a medir a intenção de casar-se com ele, acompanhando-o ao seu quarto na casa dos pais e vendo, com os seus próprios olhos, o que, como esposa, a espera: a revelação das próteses, da deformidade, da dependência para apertar os botões do pijama, para apagar a luz, para abrir a porta do quarto durante a noite. Aquela terrível nudez da personagem, correspondendo à do actor na sua vida, deve ter sido muito difícil de enfrentar, uma vez que se trata de uma nudez indesejada, com que dificilmente se conquista mas facilmente se repugna, anunciando uma pena perpétua de solidão que nos traz ao espírito memórias do caso ainda mais extremo de “O Homem-Elefante”, de David Lynch. Mas ao passo que em “O Homem-Elefante” a deformidade do actor (John Hurt) era construída, a de Russell era real.

Para premiar o seu esforço e a esperança que, como o seu exemplo, deu a tantos outros que, como ele, saíram da guerra afectados por incapacidades físicas, os directores da Academia de Artes e Ciência Cinematográficas de Hollywood criaram um Óscar honorário, atendendo a que as possibilidades de ganhar o Óscar de melhor actor secundário eram muito reduzidas, atendendo às reputações dos co-nomeados: Charles Coburn, William Demarest, Claude Rains, Clifton Webb. Russell também ganhou este e tornou-se o único actor a receber dois Óscares pelo mesmo papel, o que foi útil, pois em 1992 vendeu o regular para pagar despesas médicas com a esposa.

Dignos de nota são também as interpretações de Myrna Loy, Dana Andrews (“Laura”), Teresa Wright e muito especialmente Fredric March, uma lição de representação de grande amplitude, do drama dos olhares convincentemente perdidos à comédia dos pormenores da embriaguez, mas com uma classe expressiva e gestual que o distingue sempre, independentemente de com quem contracena (Óscar de melhor actor). William Wyler também recebeu o Óscar, mas nós, por esta altura, já sabemos do que ele é capaz...

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