Vamos, num instante, a 1983, quando estavam a fazer uma biografia de Mozart que, apesar de muito acrescentada de ficção, conservou a atracção de suscitar nos espectadores meditações prementes sobre a natureza da música, o alcance do génio humano, a capacidade de alguns eleitos se tornarem instrumentos reveladores da obra de Deus entre os homens ou, por outro lado, a possibilidade de haver entre os homens intelectos que abrem passagem ao reino divino. E isto bastaria para que um filme se tornasse digno de nota.
Tudo começou, no que diz respeito a esta composição de elementos biográficos comprováveis e de invenções de conveniência, numa peça de teatro escrita por Peter Schaffer, que o próprio transformaria, sob pedido e sugestões de mais invenções de conveniência de Milos Forman, incluindo o acréscimo de personagens relativamente à peça teatral, tendo em conta a especificidade da linguagem cinematográfica e a maior importância que viria a ser dada à música, elevando-a à condição de personagem virtual.
É por isso que se pode dizer — e vou fazê-lo — que mais do que um filme para quem gosta de biografias, “Amadeus” é um filme para quem gosta de música. E nem sequer é especialmente destinado a quem gosta de música clássica, mas a quem quer aprender a gostar desse género musical mais ou menos indefinido, mas sinfónico, isto é, que se exprime a muitas vozes, simultâneas ou alternadas, para as quais é preciso escrever não só com criatividade, mas também com sentido de harmonia e com visão de conjunto.
É muito interessante sermos conduzidos por António Salieri (F. Murray Abraham), compositor da corte do sacro-imperador romano-germânico, José II (Jeffrey Jones), ao longo da história, em retrocesso ao passado, já que foi ele, Salieri, o maior admirador e o maior inimigo de Mozart (Tom Hulce). E é com ele também que nós, apreciadores não-especializados de música, temos muito a aprender quanto à apreensão, compreensão e fruição dessa arte e da percepção do toque de génio naquilo que ouvimos ou, mais ainda, naquilo a que, a maior parte das vezes, somos surdos.
Numa relação muito proporcional entre o sublime que está em cada peça de Mozart e a rendição com que o reconhece, Salieri dá-nos uma aula de sensibilidade artística e atrai-nos para o seu raciocínio muito lógico de tentar identificar, sem indicação prévia, um ser humano que traduza nos gestos, na voz, sobretudo na face, a condição superior de falar com Deus através de uma arte única. Que desilusão, que incoerência, que amarga e inacreditável ironia que à alma suprema possa corresponder um “homúnculo” de gargalhada alarve e boçal, preso aos vícios rasteiros do álcool, do sexo e das dívidas, num estado de perene adolescência e desenquadramento social, vulgar, vulgar!
Será possível? Será compreensível? Será aceitável? Não é. Por isso Salieri se torna inimigo de Deus e de Mozart, Seu instrumento, indigno, na Terra. E prossegue no seu desígnio até ao fim, entre um sacro-imperador que reage aos acontecimentos mais desconcertantes com um fleumático e não menos desconcertante “Well... There it is!”
Há uma cena em que a mulher de Mozart, “Stanzi” (Elizabeth Berridge) dá a ler a Salieri as composições inéditas do marido, ouvindo-se pequenos excertos de cada uma das composições, como se Salieri, pela leitura das respectivas partituras, presenciasse a sua execução orquestral.
A primeira — o segundo andamento do Concerto para Flauta e Harpa (K. 299) — poderá muito bem ser tudo aquilo de que precisamos para nos convencermos de que existe um tempo e um lugar muito acima e para além da espécie humana e que, por alguma razão que desconhecemos, mas que nos enche de esperança (em si mesmo, um prodígio), um de nós, entre um punhado em que estará decerto Camões, foi elevado ou se elevou a essas fantásticas alturas. E, tal como “fraco rei faz fraca a forte gente”, mas aqui pelo seu contrário, se há tais seres e mesmo assim são homens, então é de esperar que tenham levado um pouco de nós com eles, nessa viagem ao lugar onde Deus será visível.